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AC, Alho francês e cebolas
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Os deuses, desesperados, parecem ter enlouquecido. Cansados da ambição desenfreada dos homens, alimentada na incapacidade de percepção dos limites, lançaram invisíveis chispas que tudo tolhem, tudo paralisam, pondo à prova a capacidade de sobrevivência da espécie humana. Seremos, socorrendo-nos daquilo que de melhor existe em nós, capazes de vencer este desafio?
Aproveitando uma pausa da chuva, saio de casa para uma rápida surtida pelo espaço da horta, qual piparote em cinzentas cogitações que me vão toldando o espírito. As cebolas, o alho francês, as alfaces, as cenouras, as curgetes e os tomateiros, recém inquilinos da terra, parecem-me bem instalados, agradados com as últimas chuvas. Ao lado, num verde mais volumoso, em completa maturação, também as couves galegas e os repolhos parecem ter ganho uma nova vida, começando a piscar o olho para a colheita. Mais além, numa singular elegância, as ervilhas começam a pavonear-se medalhadas de belas e abundantes vagens. Espalhadas estrategicamente pelo terreno, também as novas árvores começam a dar sinal de si, a esboçar os primeiros sorrisos. Só as duas nogueiras parecem querer continuar no aconchego do saco umbilical, teimando em não dar sinal de vida.
Um raio de sol começa a espreitar, timidamente, por entre as nuvens, enquanto a pardalada, em eterna omnipresença, se mostra incansável na procura de alimento. Duas andorinhas, chilreando, saem do telheiro da lenha, adaptado a condomínio privado há já vários anos. Lá em cima, num voo planante, quase majestoso, uma cegonha cruza os ares, talvez em busca de novos materiais para retocar o ninho. E, sem me dar conta, começo a abrir os braços, como que a querer abranger toda aquela grandiosidade, delicadamente tecida em simplicidade.
A chuva volta a mostrar-se. Regresso a casa, sem pressa, convicto do essencial: aquilo que de melhor há em nós vai continuar a emergir, qual força avassaladora que tudo reconverte, tudo redime. Sim, vamos vencer este desafio.
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Respira-se a frescura do ar, a poesia em estado latente.
ResponderEliminarObrigada por este fôlego de (boa) leitura.
Lídia
Por aqui também é ver as árvores despontar pela primeira vez. As flores do pessegueiro estão lindissimas, a aveleira cheia de pequenas folhas, o damasqueiro com um verde clarinho a brotar de todos os ramos.
ResponderEliminarE as videiras....
As videiras que crescem de dia para dia! :)
Numa escala muito diferente da que aqui se apresenta.
Mas a primavera está mesmo a chegar, indiferente a pandemias.
Li, reli e voltei a ler de braços abertos para que este enorme bálsamo acalmasse a minha alma.Fecho os olhos e caíram lágrimas.
ResponderEliminar"Fecho os braços"* sem pressa, convicta* do essencial: aquilo que de melhor há em nós vai continuar a emergir, qual força avassaladora que tudo reconverte, tudo redime. Sim, vamos vencer este desafio.
*Palavras minhas o que desde já te peço desculpa pelo abuso.
Um enorme, mas enorme mesmo abraço de agradecimento.
Que linda mensagem e sim,haveremos de tudo isso vencer! Bjs,chica e saúde!!!
ResponderEliminarLamento todas as mortes
ResponderEliminarmais ainda os que morrem saudáveis por todo o mundo
É bom partir e regressar à horta
Abraço
Meu caro AC,
ResponderEliminarPara não cometer um crime de lesa-pátria, digo-lhe: texto comovente. A descrição das suas terras está perfeita. Cada adjetivo escolhido realça o aspecto desejado em realce. Uma maravilha!
E venceremos, sim. Venceremos esta guerra. Nunca precisamos tanto nos dar as mãos.
Um abraço,
Um texto pincelado a aguarela, perfumado delicadamente a urze. É tão bonita a sua forma de pintar, sô AC :)
ResponderEliminarTarde descansada e com saúde
Gosto das tuas palavras com sabor a terra e suor, de onde emergem sempre coisas boas, autênticas e sem floreados.
ResponderEliminarO cebolinho e o alho, com esta chuvinha, vai brotar aí que é uma beleza!!
Beijinho, AC, Homem da Terra, do Sol...e, às vezes, da Lua!! :)
Havemos de vencer isto AC e se reaprendermos a viver diferente e se tirar o melhor de nós, já estamos a ganhar. Essa horta está um brinquinho :)
ResponderEliminarBoa noite
Tenho, como tu, meu amigo, a convicção de que depois de passada esta tempestade que nos tolhe os movimentos haverá um mundo novo de novas oportunidades e, porventura, melhor qualidade de vida, em harmonia com as coisas simples. Abraço.
ResponderEliminarEntão vai bem a horta! Se as aves daí forem como as daqui, vai ter dificuldade em mantê-las longe dos canteiros.
ResponderEliminarUm abraço, tenha uma ótima semana!
Belíssima crônica_poética e deliciosa de ler.
ResponderEliminarFiquei a imaginar esses canteiros de couves repolhos tomateiros e tendo a certeza que nada neste mundo é melhor que isto _uma hortinha.
Obrigada AC porque divides conosco essa maravilha de 'imersão'_esse doce caminhar entre o que semeia e o que irá colher.
grande abraço e votos de uma boa semana e que seja mais'negativo que positivo'em termos médicos,nesse momento global.
Iremos vencer este desafio... mas iremos regredir no tempo... talvez de volta, à grande crise de 1929... pois o mundo tal como o conhecíamos, num futuro próximo perdeu-se!... Turismo em massa, consumismo, livre circulação de pessoas e bens?... Como recuperar de tudo isso, com o grande rombo que as economias irão ter... e com o número de tantas empresas que irão fechar... é a questão, que se nos afigura no horizonte... já que uma segunda vaga desta pandemia, se perspectiva para o próximo Inverno... à semelhança do percurso de outros Coronas... que circulam já há bem mais tempo...
ResponderEliminarHaja um pedacinho assim de céu na terra, para nos desanuviar o espírito... mas aqui em pleno meio urbano... a coisa está complicada... no momento, até o quartel de bombeiros aqui no sítio, está todo ele em quarentena com o pessoal lá dentro, há uma série de dias... transportaram um doente... que deu positivo... e só isto... foi o suficiente!... Dos velhotes nos lares... nem é bom falar... não têm visitas, mas agora a fonte de contaminação, são os próprios funcionários... quem está pronto para agir como um verdadeiro profissional, da área da epidemiologia?... Ninguém!...
Os carros... continuam a passar na estrada... muitos continuam a sair e a conviver... na Póvoa do Varzim... vergonhoso o comportamento das pessoas ao logo da marginal... Enfim... por estes dias, o que eu gostava mesmo... era de ser um brócolo!... Para não me ver num molho de brócolos, a tentar safar a minha velhota, de uma sentença quase certa e adiada, sabe-se lá até quando... se tudo se manter, por mais um ano assim... até uma vacina surgir... e vacinas para bactérias... existem... mas vacina para um vírus?... Parece-me não ser exactamente a mesma coisa...
Beijinhos, AC! Bom domingo!... Peço desculpa, pelo meu optimismo de hoje... ter ido completamente para as couves!... :-))
Ana
Poeta , seus textos sempre me emocionam mas este em especial .
ResponderEliminarAgradeço a partilha e sua generosa visita ao meu espaço .
Vivemos por aqui momentos de muita preocupação.
Minha filha é médica e trabalhando na emergência de um hospital aqui em São Paulo nos conta da ocorrência de muitos casos do corona vírus . Minha mãe está em casa comigo pois tem 95 anos e , embora com boa saúde , inspira cuidados por pertencer a grupo de risco .
Assim , seu texto ao falar de esperança nos dá ânimo .
" Sim , vamos vencer este desafio ".
Beijos
Belíssimo texto, penso que se sairmos dessa (vamos sair), poderemos entrar noutra crise, uma crise econômica mundial. Creio que será massacrante, mas estaremos vivos!!! Pensar diferente, com a mesma solidariedade que estamos a ver agora! Será que o fato de sairmos vivos, quando muitos já morreram não tocará corações inflados preocupados com algo menos? Se os povos continuarem solidários, não levaremos muito para cada povo se reerguer. É o que mais peço.
ResponderEliminarBeijo, um boa semana, se possível for. Creio que sairemos dessa crise mais enriquecidos emocionalmente e mais humanos.
A humanidade se der o melhor de si, superara este desafio e o próximo. As mentalidades tem que mudar, os modos de estar na e perante a vida tem que mudar de paradigma a nível mundial.
ResponderEliminarTodas as vidas que se perdem, são de lamentar e chorar. As que são agora contadas e as outras tantas que não o são, e que a nível mundial, devem ascender os defuntos agora amiúde referenciados. O mundo está a parar e a segregar-se por ter um buraco negro no lugar do seu humbigo. Só agora acordou para a vida, quando reparou que sem (um tipo de vida) humana não há sociedade nem economia, só natureza (cidade morta) no seu estado puro. É tempo de pensar de mudar e de agir com assertividade, porque o mundo é pequenino do tamanho de uma ervilha, e o valor do ser humano é todo igual.
Infelizmente não tenho um paraíso como o seu. Mas dentro do recolhimento faço a minha parte.
Acho que a vida vai ter de recomeçar pelo resgate dos paraísos abandonado, e da consolidação dos valores de família.
Beijinho AC.
Que bela composição, como sempre!
ResponderEliminarAh, quão divino seria se tivéssemos a consciência de que somos natureza e aprendêssemos com todas as suas manifestaçõs.
Seu texto remeteu-me à Cecília Meireles:
“Aprendi com a primavera a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira”
Beijo.
:)
A Primavera chegou aqui com muito calor e humidade.
ResponderEliminarAquele abraço, boa semana
AC
ResponderEliminarUm texto que nos acalma...porque o momento é negro e desesperante.
obrigada!
cuide-se
beijinhos
:)
Que cada um se socorra do melhor que tem em si mesmo. É um conselho sábio. Que bom dedicar-se à agricultura. Faz bem. Ver os pássaros deixa-nos o desejo de voar com eles para bem longe da crueldade deste mundo que nos cerca. Os deuses devem estar loucos… Eu sei que nós humanos estamos a merecer este aviso, mas que os deuses sejam misericordiosos...É um gosto ler o que escreve.
ResponderEliminarUma boa semana, com muita saúde.
Um beijo.
Gosto de ir contigo à horta. Colhes sempre uma faisca de poesia. E a melodia nunca falta. As aves, também, gostam dela.
ResponderEliminarGostei ainda do desafio de esperança. Tem mesmo que ser.
Um beijo.
A natureza mostra como aínda nos pode surpreender. É com essa convicção, essa força descomunal que vamos enfrentar este inimigo mortal, sempre de forma responsável!
ResponderEliminarBoa semana, AC !
Que beleza de texto e de fotografia!
ResponderEliminarAo ler, vi o meu quintal, o meu telheiro, as "minhas" andorinhas... mas esse chão é mais fofo que o meu, que é só barro vermelho, duro de meter a enxada, mas bom para criar batatas :)
Beijinhos.
Gosto tanto de te ler!
ResponderEliminarE que bela horta...a fotografia ficou genial.
Eu gosto desta atmosfera de autenticidade que emerge dos teus textos.
Beijo
Vamos vencer o desafio, sim, amigo AC, assim saibamos conter-nos no espaço divino vitruviano, o Homem de braços abertos, na razão-proporção correcta entre nós e a Natureza.
ResponderEliminarAbraço.
Essa certeza certa do último parágrafo é a prancha de que dispomos neste desnorte, assim saibamos manter o rumo. Não há outra.
ResponderEliminarAssim saibamos conter-nos no espaço divino do HOMEM vitruviano - O DOS BRAÇOS ABERTOS - na razão-proporção-equilíbrio entre nós e a Natureza.
Abraço.