domingo, 8 de março de 2020

A PROMESSA

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Imagem retirada daqui
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A auto-estrada há muito ficara para trás. Após desenvencilhar-se da estrada municipal, com passagem por meia dúzia de aldeias, começou a ladear a montanha por uma estrada estreita, em mau estado, pejada de curvas. Os incêndios tinham deixado marca, era notório, mas ainda se via, aqui e ali, um ou outro pinheiro, além um carvalho, ilhas isoladas no mar de urze e giestas que entretanto tinham desabrochado, sobreviventes duma tragédia há muito anunciada.  
Continuou a viagem, tentando redescobrir traços da paisagem doutros tempos à medida que vencia cada curva. No Braceiro, onde as courelas, outrora, alimentadas pela água das nascentes, eram cultivadas com esmero por um rancho de pessoal cantante, tinham soçobrado à invasão das silvas. A vegetação, indiferente à pegada humana, nem de caminhos ou veredas deixara rasto.  Digeriu a mágoa, meteu nova mudança e galgou mais algumas curvas. Às tantas, ultrapassada a Fraga da Moura, viu-se na Portela das Almas, ponto de encontro nocturno, segundo estórias de antanho, das almas do outro mundo. Não conseguiu evitar um sorriso com a lembrança, como se regressasse ao tempo em que a avó maravilhava com gestos e palavras nos serões invernais. Encostou o carro, saiu e aproximou-se do enorme tronco do velho castanheiro, centenária sentinela de tudo quanto a vista abrangia. Pôs a mão direita por cima dos olhos, à laia de pala, e divisou, lá ao fundo, sobranceiro ao serpentear da ribeira, o Vale da Ponte, ancestral ninho onde tudo começara. Olhou, demoradamente, para o conjunto de casas. À medida que as ia identificando, sem pressas, o pincel da memória ia dando colorido a cada uma delas, pintalgando-as de mil e uma recordações bordadas com algumas travessuras. Sentiu o coração palpitar, sentia-se de regresso à eterna casa.
Olhou para o relógio. O tio e o alemão já deviam estar na loja da Belmira, um misto de mercearia, taberna e posto público, epicentro das poucas novidades do lugar, aguardando a hora para a consumação do acto que ali o trouxera. Estava tudo tratado e falado, a internet facilitava muito estas coisas. O alemão, saturado da vida urbana, procurava reencontrar a autenticidade da vida no contacto com a natureza. Ele, por sua vez, incapaz de se libertar das teias com que a vida o foi tecendo, viu naquele estrangeiro a oportunidade de cumprir a promessa que fizera à mãe: as terras herdadas da família em Vale da Ponte nunca seriam abandonadas.
Reentrou no carro e encetou a descida. O contrato, por sua exigência, não contemplava a venda dos terrenos. O alemão instalava-se, cultivava, podia introduzir todas as ideias que lhe povoavam a mente, dar livre curso à sua utopia. No entanto, após o consumar da sua vida, as terras voltavam à posse da família. Talvez os filhos, ou os netos, quem sabe...
- Frank Bauer?
O sorriso desenhado e a mão estendida diziam tudo.
Almoçaram em casa do tio, conversaram sobre as gentes e o lugar e depressa ultimaram as pontas soltas daquele inusual contrato. Após mais um aperto de mão, de olhos nos olhos, faltava a parte mais solene, aquilo que verdadeiramente ali o trouxera. Dirigiu-se para o cemitério, empurrou o velho portão de ferro e procurou a campa familiar. Depois, em acto solene, justificou-se:
- Ouve-me bem, mãe. Prometi que um dia voltaríamos para este lugar, a terra que sempre amaste, que corre nas nossa veias, mas as minhas batalhas foram mais que muitas e os teus netos andam distraídos com outras lides, correndo em busca não se sabe bem do quê. Mas renovo a promessa: um dia havemos de voltar, como tu sempre quiseste, mas parece-me que, por ora, as nossas terras ficam bem entregues. Sabes, tu havias de gostar do Frank. Os olhos brilham-lhe quando fala da terra, está prenhe de planos, até já fala em construir uma mini-hídrica. Bem sei que não era isto que sonhavas, mas podes ficar descansada, mãe, ele vai saber cuidar da terra como ninguém. Adeus, mãe. Tal como o poeta,  já podes ir com as aves.
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21 comentários:

  1. Belíssimo texto. O primeiro parágrafo, ressalvadas as espécies vegetais distintas, é quase uma descrição do que tem acontecido em certo país da América d Sul, em que os incêndios florestais não são raros.
    Um abraço, tenha uma ótima semana!

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  2. Antes de escrever tive de limpar as lágrimas.
    Um texto emocionado e emocionante, que me trouxe a lembrança de uma promessa - também cumprida - que não verbalizei, mas sei que esteja onde estiver, a minha saudosa Mãe saberá que a sua última morada não foi em terra "onde ninguém a conhecia", como tanto temia.

    Não deu o seu último suspiro na terra que a viu nascer, mas é lá que repousa, e dorme, o sono derradeiro.

    Um beijinho, AC.

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  3. A cidade grande enfeitiça a vida e tolda os pensamentos, só mais tarde, às vezes, tarde demais, nos apercebemos da riqueza das raízes, e do tanto sofrimento que podíamos ter evitado, se menos ambiciosos.

    Boa noite, AC, como sempre, lê-lo é um colírio para os olhos e para a alma

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  4. Retomando as rotinas depois de uma semana em correria em Portugal.
    Boa semana

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  5. É o nosso destino entregar a outrem o que os nossos maiores nos legaram e que nós, por vicissitudes da vida, não conseguimos manter como jardins produtivos, como foram outrora.
    O meu sentido utópico da vida, de quando em vez, diz-me: não há espaços vazios que não tenham tendência a encher. Alguém, algum dia, voltará a aproveitar o pedaço de chão que alimenta e vivifica a gente. Assim o queiram as elites que tudo determinam num qualquer gabinete dum grande centro urbano.

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  6. Fiz consigo esta viagem como se fosse personagem da sua narrativa. Senti a sua emoção. Partilhei consigo o amor pela terra…
    Lindíssimo!
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  7. Um texto tão cheio de poesia, como de memórias e emoções. Para ler e reler com o coração, apertado, lembrando outros tempos, outras histórias, senão iguais, muito parecidas.
    Abraço

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  8. Não sei por que, mas me emocionei muito ao te ler. Do início ao fim,arrepios de emoção! LINDO sentir! abração,chica

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  9. Mais importante que prometer
    é cumprir

    Sempre bom visitar as suas memórias vivas
    Abraço

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  10. Promessas adiadas e não cumpridas que acabam por ser carregadas para sempre e nunca esquecidas. No entanto, o amor à terra ainda deve estar lá, enraizado. Apenas um pouco esquecido talvez...
    Que texto emocionante.
    Bjinho AC

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  11. Arrepiei-me a ler este texto. Trouxe-me tantas recordações!
    Grata por este momento.

    Um abraço

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  12. oii, boa noite! três coisas na vida que nós nunca deveríamos quebrar: promessas, confiança e um coração. passadinha para deixar um beijo grande com o desejo de uma semana gloriosa!

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  13. A sua narrativa é cheia de movimento, paisagens, odores, cores, luzes e muito emocionante!
    Seguimos consigo nessa viagem da memória e do tempo real (simultaneamente), em que o pensamento escrito, vai nos atualizando da ancestralidade e da profunda ligação com a terra, do sentimento arraigado até onde a vista alcança e o coração em paz, por finalmente poder voar "com as aves".
    Seu texto remeteu-me ao poema, CEMITÉRIO PERNAMBUCANO (NOSSA SENHORA DA LUZ), do poeta pernambucano, João Cabral de Melo Neto.

    Trago um excerto:

    "[...]hoje à terra-livre estão.
    São tão da terra que a terra
    nem sente sua intrusão".


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  14. Comovente amigo e felizes daqueles que "têm terra" para emoções, recordações, inovações e outros "ões" ao invés de mim que sou uma sem terra e qualquer dia sem casa:). Olha sinceramente chorei ao ler este teu "exemplo de vida" que só hoje consegui comentar.

    Não gostei da imagem o que te peço imensa desculpa:(

    Abraços e obrigado

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  15. Que triste, lembrei de minha querida mãe, não prometi nada a ela, mas sabia de sua preferência. Hoje faria diferente. Certas coisas temos de pensar sozinhos para não nos arrependermos. Ficou a lição.
    Beijo, uma ótima semana.

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  16. Quase o li em voz alta, meu caro AC. Acho que ainda vou fazê-lo. Nada se fechou ao teu olhar, ao teu lirismo... Um belo texto!
    Um abraço,

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  17. De uma sensibilidade invulgar! A emoção estética perpassa cada palavra...
    BJ

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  18. ... caminhei pelas suas palavras e voltei à terra, às raízes.. obrigada

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  19. Tocante!
    Nem todas estas histórias correm bem. E heranças abandonadas doem mesmo.

    Um beijo, AC.

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  20. Um texto comovente... que nos mostra... que um dia, sempre se volta... à origem de todas as coisas... normalmente, sempre lá mais para o futuro... com... ou sem contratos...
    Beijinho
    Ana

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