sexta-feira, 17 de julho de 2020

O GRITO

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Fotografia de Flavio Scalzo
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Caminhavam quase hirtos, a medo, não se desviando do rumo pré-definido, como se em cada vulto, em cada esquina, ou em cada movimento, espreitasse o perigo. 
Fazia calor, o suor começava a insinuar-se, o incómodo fazia-se cada vez mais presente. Quase sem se darem conta, iam ajeitando as máscaras, tentando aliviar o não aliviável: a insegurança no recém-viver, a incapacidade racional de estabelecer pontes harmónicas para a nova forma de estar. 
Tentavam seguir as regras, mas elas mudavam a cada instante, acentuando a insegurança geral. Além disso, na luta pela sobrevivência, só alguns podiam ficar resguardados, em casa ou em qualquer poiso distante. Os outros, a grande maioria, os tais que o cronista de antanho designou de "ventres ao sol", muitos deles achocolatados, tinham que lutar, continuamente, por um lugar no autocarro, no comboio, ou no barco, onde o distanciamento social era remetido, sem aviso de recepção, para a procedência. Tinham que chegar ao destino, ou não recebiam.
Alina, veterana desta luta diária, desceu as escadas para entrar no metro do Marquês. Aproveitando um breve momento em que não via ninguém por perto, retirou a alça da máscara da orelha direita, manteve-a a meia haste e, com toda a convicção, lançou o grito libertador, prolongado pelas paredes do túnel:
- Foooodaaaa-se!
Depois, já mais aliviada, voltou a ajeitar a máscara e correu, desalmadamente, para não perder o comboio da sobrevivência.
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28 comentários:

  1. Tudo dito, a nu e cru pintado. Eu, nem uma vírgula mudo, até porque nem sei ler nem escrever.

    Como diria meu pai: Boa malha, sô AC

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  2. Ficou mais aliviada, sim, mas porque não se soube controlar, acabaria por chegar ao destino esfalfada e cheia de calor, o que, em circunstâncias menos públicas, teria vontade de proferir “f...” em duplicado.
    : )

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  3. Ai agora é O GRITO?

    Tá bem... eu, assim como assim, até já estou por tudo.

    O desespero que provoca a máscara a quem tem de a usar durante muito tempo, deve provocar um grito de alívio quando a tira, mesmo que seja momentaneamente, mas no tempo em que o senhor Edvard Munch o pintou achas que o Grito foi de alívio? Só perguntei... :)
    Já nem digo mais nada senão ainda me expulsas cá do pedaço...

    Fica bem, AC!

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    1. Com tanto por onde pegar, trazes-me para aqui o Munch?
      Vá lá, Janita, está um calor danado, todos o sabemos, mas não mistures alhos com bugalhos. Com tudo isto, fizeste-me recordar a história de Apeles e do sapateiro. Conheces? :)

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    2. Não AC, não conheço a historia de Apeles e do sapateiro, mas hei-de tentar saber. Contudo, algo me diz que não se trata de nada que abone lá muito a meu favor!

      Já que buliste com o meu amor-próprio, pois então sabe - embora eu saiba que tu sabes - que a minha alusão a "O Grito" de Munch, não é totalmente desprovida de sentido. E porquê? -

      Ora... porque o nome da tela e título actual do teu post, não foi o título que inicialmente escolheste. Verdade?
      Daí, a observação com que dei início ao meu comentário:

      Ai agora é O GRITO?

      Bem, com este calor quero mais é água fresca...

      Beijinho! :)

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    3. :)
      Num texto com cerca de 20 linhas, tu salientas o facto de o seu autor - com toda a legitimidade, aliás - ter alterado o título. Fraco conteúdo deve ter o texto, só pode. :)
      Vai lá beber a água fresca, Janita, mas não te esqueças do Apeles.

      Um abraço grande! :)

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    4. Ora...o texto é óptimo e tu sabes quanto eu valorizo os teus textos...deixa-te de pieguices... :) Se esperavas alguma reacção da minha parte ao grito de liberdade provisória, da moça, sabe que práqui é o que mais se ouve. Esta gente vive com o carago e o resto, na boca! :)

      Pois...eu, sapateira, não irei além da chinela, não te aflijas. Ehehehehe

      Abraço, nem grande nem pequeno.

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    5. És de mais. Abraço nem grande nem pequeno. Leva lá a taça, Janita. :)

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    6. Ehehehehe...Eu ofereço-ta. Tu é que a mereces.

      Beijinhos e bom fim-de-semana, AC. :)

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  4. Há outros gritos
    Os dos ricos
    Taxem-nos
    Taxem-nos
    Taxem-nos

    Tomaram a consciência
    que de seguida à máscara
    se seguirá a baixa
    do poder de compra

    Tal grito
    é ainda pouco ouvido
    Contudo...

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  5. Decerto que o grito foi ensurdecedor. Hoje, vivemos rodeados de medo. Dizer o contrário é pura heresia
    Para o texto o meu 👏
    .
    Bom fim-de-semana
    Abraço

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  6. Ora, até eu que sei de chinelas e traços de pincel, podia lá deixar de associar este grito ao outro... confesse lá que era exactamente essa a associação que esperou que (quase) todos instintivamente fizessem, AC!

    Abraço

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    1. É que não era mesmo, Maria João. E esta? Será que sou motivo para um study case? :)

      Abraço

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  7. Parece que estou a ler um texto de um filme de ficção, tipo terror. A foto confirma-o.
    E, no entanto, esta cena é de hoje e até se passa na minha rua. Andamos com medo uns dos outros.
    AC, apetece mesmo lançar o grito libertador da Alina.

    Para ti vai um beijo. :)

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  8. A realidade aí espelhada em cada uma das tuas palavras!
    Beijo

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  9. Não gosto das máscaras, mas reconheço que, neste momento, são indispensáveis. Toda essa situação anda muito irritante.
    Um abraço, tenha uma ótima semana!

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  10. "Tinham que chegar ao destino, ou não recebiam." e infelizmente os que têm tudo para ficar em casa e de barriga cheia são os que mais reclamam e tapam a boca com o nariz de fora.
    Identifiquei-me muito com a Aline e por vezes solto "gritos" em kimbundu e há dias fui apanhada por um homem que se fartou de rir com o que eu disse:))))pois é da minha terra. Cum caraças.

    Adoro o calor, aguento mais do que o frio mas a máscara tira-me do sério por embaciar os óculos. Não morro do vírus mas posso morrer numa queda daí Só usar máscara em espaços fechados mas na rua zero.

    Por vezes vejo o rosto das filhas que estão na linha da frente...e é obra mas já não lhes incomoda nada. Questão de hábito dizem elas.

    Estava a comentar e recebi uma mensagem que me fez rir:
    O Jesus regressou ao Benfica
    A Cristina Ferreira regressou à TVI
    Só falta o vírus voltar para o morcego:))))

    Nada disto tem a ver com o teu Grito...que lendo os comentários também na minha modesta opinião em nada tem a ver com o "GRITO" do outro:)

    Não me batam pf porque já fui ao pão, já tomei o meu café, já lavei e desinfectei a escada e acessórios do prédio, o chão da casa e no final sentei-me e gritei: "Tupariova":)))))

    Beijocas e um bom domingo e desculpa AC

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  11. Poeta , seu olhar apurado e sensibilidade à flor da pele só poderiam
    nos oferecer um texto primoroso como este .
    Alina gritou por todos nós .
    Obrigada pela partilha e pela visita generosa ao meu espaço .
    Beijos

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  12. Se me contassem algo parecido há um tempo atrás, acharia que era ficção.
    Mas, infelismente é real, é triste é doloroso e deprime qualquer ser humano com sensibilidade.
    Não fui eu que dei o grito, mas se fosse, juro que não estava louca.
    Um texto muito bom embora nos deixe com um nó na garganta.
    Beijinhos
    :)

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  13. Imaginem a máscara na cara aqui com calor e humidade.
    Até dá alergias.
    Aquele abraço, boa semana

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  14. Até me pareceu ouvir o grito aqui, onde estou comodamente sentada. Sei que as desigualdades sociais são cada vez maiores e que há pessoas, as mais carentes, que todos os dias se expõem porque não têm alternativa. E o fosso entre os pobres e os ricos está cada vez mais fundo. Um texto belíssimo, para reflectir.
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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  15. mask is annoying, but essential in public space.

    Have a wonderful day

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  16. Esta é realmente a dura e nova realidade que todos vivemos.
    Um texto excelente!
    Boa semana
    Abraços

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  17. A Angústia do Grito está patente em todos nós. Nunca a tela do pintor foi tão expressiva e universal para as gerações presentes.
    Um abraço

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  18. Um retrato atual deste mundo estranho em que vivemos atualmente. A mim a máscara não me incomoda absolutamente. Há quase 15 anos que durmo com uma bem mais difícil de suportar agora no verão. De tal modo que em algumas noites mais quente me vejo obrigada a dormir sentada no sofá.
    Saio pouco, e só em absoluta necessidade. Não saio de casa sem ela e levo sempre outra para o caso da primeira ficar húmida.
    Gostei muito do seu texto, e compreendo perfeitamente o grito da Alina.
    Abraço e saúde

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  19. E quantos mais querem libertar o grito? Talvez "todo mundo e ninguém".
    Sabes como tirar um peão do tabuleiro, AC
    Parabéns por outro bexto excelente!
    Um abraço,
    Um abraço,

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  20. Confesso, que pela parte que me toca... poderia resumir todo o meu 2020, em tal palavra...
    Um texto, que bem pode servir de catarse, ao que nos vai na alma, nestes turbulentos, enervantes, desesperantes e desgastantes tempos, que atravessamos...
    Fantástico, este brilhante texto bem por dentro dos dias de agora, para tantos, AC! Beijinho
    Ana

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