terça-feira, 6 de abril de 2021

CONVERSA IMPROVÁVEL COM UMA CEREJEIRA

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AC, Cerejeira com um niquinho de Estrela ao fundo
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Tudo se prepara para a festa da renovação, tudo se começa a engalanar, com um aroma muito próprio, muito fresco, a perfumar o ar.
Tu, contudo, nem pareces a mesma de há uma semana atrás. Vais sorrindo, mas a cada dia que passa pareces mais contrafeita, como se algo de grave se passasse. Que se passa?
Olho para ti, reparo no viço das flores a desaparecer e então entendo a cusquice das duas andorinhas que, em dois fios do beiral, logo pela manhã, antes de iniciarem a azáfama costumeira, se deliciavam a falar daquilo que te envenenava a alma. Dá Deus cerejas a quem não tem dentes, pareciam concluir elas, com desdém. 
As andorinhas sabem da vida delas, tu sabes da tua, mas não evito pensar que tu gostarias que o apogeu das flores se mantivesse, que continuasses a ser admirada, que o palco a que te guindaram, por momentos, fosse eterno. 
Nem sei que te diga, não vá magoar-te. Fazes-me lembrar uma pessoa amiga que corre, desesperadamente, em busca das últimas novidades para se manter jovem - ela fala-me de algas, de massagens de pedras, eu sei lá... - e eu, enquanto a oiço, não deixo de sorrir. Ela não gosta que o faça, ainda não entendeu que as coisas, muito para lá de se possuírem, têm, acima de tudo, que se sentir. E, aqui para nós, diz-me lá: para além do decrépito da tua flor, não sentes algo de maior a eclodir dentro de ti? Repara bem, os frutos, as deliciosas cerejas que, daqui a um mês e meio, motivarão a cobiça de muitos, começam a despontar donde antes emergia a tua vaidade. Pensa e aguarda. Vais ver que, aquando rubras e bem docinhas, ninguém vai conseguir despegar o olhar de ti e dos teus frutos, derretido em cobiça. Num palco sem limites, essa será a tua verdadeira representação deste ciclo. E, podes crer, desde que bem cuidada, outros se seguirão, pela certa.
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14 comentários:

  1. Mas que bela conversa. Até eu lhe dedicaria tempo, daqui a um mês, quando estivessem rubras e docinhas :-)

    Boa tarde, sô AV

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  2. Um texto muito, muito interessante.
    A ligação à Natureza, como equilíbrio
    e bem-estar, é tão motivador como fundamental.
    Deixar que o tempo corra no seu tempo,
    viver as estações sem pressas de chegar,
    seja onde for, e colher o melhor que o olhar
    possa vislumbrar, é um passo para encontrar
    aqueles momentos a que chamamos felicidade.
    Depois, temos os frutos, que hão-de chegar
    no momento certo. É uma questão de saber esperar...
    Gostei muito (repito) desta visão espelhada numa bela e aconselhável reflexão.
    Um abraço, AC.

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  3. Enquanto lia, estava a pensar exatamente nisso: também as flores murcham e caem, mas, se assim não fosse, não teríamos os frutos. É a lógica da natureza, quer gostemos dela, quer não. Outras primaveras e floradas virão, e alegria se repetirá.

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  4. Duplamente derretida - 1º em cobiça, desse teu jeito de saber descrever com tanta mestria os sentires e pensatres da cerejeira e, 2º em gula, desses saborosos e rubros frutos ficarem, brevemente, aí tão perto da tua mão e da tua boca, - estou eu, à medida que te li e me derreti toda...! ;)

    Um abraço, AC.
    (E a Serra da Estrela ali a espreitar, tão derretida quanto eu.)

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  5. Tão bela e tão poética esta conversa com a cerejeira.
    E como eu gosto de cerejas!
    Abraço e saúde

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  6. Sou fã de cerejas.
    Mas tenho cuidado porque são algo indigestas.

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  7. Que linda conversa com essa cerejeira e não é tão improvável isso acontecer, diante de tanta beleza!Adorei! beijos, chica

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  8. A cerejeira atravessa fases de intensa beleza e desfrute. Vais tu e quase a humanizas. Creio que as cusquices estão sempre à mão de semear.😀 E que bela lição, meu amigo AC!
    Beijos.
    A natureza é realmente arrebatadora.

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  9. Por vezes para não falarmos sozinhos falamos com os animais e/ou até com as árvores. Os animais até nos ouvem. As árvores não. Mas a verdade é que, perante a nossa voz, parecem dançar. E nós, sem resposta, desanuviamos a alma e o coração.
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    Cumprimentos poéticos.
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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  10. Um belo texto poético testemunhando a beleza que existe em cada etapa de vida, de uma cerejeira e de todas as outras.
    Um abraço

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  11. Uma grande lição dada entrelinhas e gostei imenso.
    Quanto às cerejas não sou muito apreciadora mas como algumas:)

    Beijocas e um bom dia

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  12. Amigo AC,
    a profundidade dos seus textos deixam-se sempre comovida.
    A vaidade da cerejeira é legítima, pois é uma árvore muita bela, mas não sei se os seus frutos, não a farão ainda mais vaidosa :)

    Tenho também aqui, um "agricultor", que também fala com as árvores e as plantas :)

    Um beijinho

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  13. Se as plantas apreciam música, e que falem com elas... as árvores... também serão seres sensíveis... depois de tal troca de argumentos... aposto que a cerejeira dará as cerejas mais doces e bonitas das redondezas... só para os justificar na integra... dado o alento, que os mesmos lhe transmitiram!
    Adorei ficar a ouvir a conversa! :-P
    Beijinho! Continuação de uma feliz semana!
    Ana

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  14. Um texto delicioso com sabor de cereja, referendando a importância de cada ciclo!

    Senti de cá a doçura das rubras e, as cobicei como se não existissem outras...

    Beijinhos, A.C.

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