domingo, 23 de maio de 2021

DE CARA LAVADA

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Fotografia de AC
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Foi na semana passada, com mais uns trocos. Tinha chovido com alguma moderação, embora de forma persistente, como que a querer abençoar o que já estava plantado. As plantas, de cara lavada - a olho nu mais as árvores, mas creio que eram todas, principalmente as silvestres - galgaram uma nova dimensão, plenas de dignidade, como que a querer dizer que nada é perpétuo, que tudo está em movimento. Assim haja carinho, respeito, assim hajam uns pingos de água. E eu, eterno aprendiz da vida, meti mais uma vez a viola no saco, enquanto anotava, mentalmente, o simples, mas complexo, da questão. Seria assim tão linear? Hesito perante a interrogação, mas apenas por breves momentos. A complexidade coloca-se a quem não entende, não saboreia, não comunga, a quem apenas funciona com um talão, de preferência com número de contribuinte. Adiante, que a passarada já se faz notar.
As aves podem ter amainado o canto, ainda que por momentos, mas os pardais, sempre omnipresentes, mais uns melros atrevidos, com ninho nas redondezas – eu suspeito onde, mas não vou lá, pois o acontecido, há cerca de um mês, serviu-me de lição – não se coíbem, com movimentos rápidos e elegantes, de se passearem pela terra fresca, em busca duma qualquer lagarta desprevenida, obrigada a sair do submundo, por excesso de água. Lá no alto, imperiais, as aves de rapina parecem planar alheias de tudo, mas é só aparência. Elas sabem bem ao que andam, atentas ao mínimo movimento daquilo que lhes interessa.
Cá dentro, por detrás da vidraça, as coisas ganham outra configuração. Ainda tento ir lá fora para me integrar no novo cenário, mas algo me diz que há coisas, para serem verdadeiramente autênticas, que não carecem da nossa pegada. Por mais ínfima. E eu, respeitosamente, obedeço ao apelo deste pedaço de terra que me tem enfeitado os dias, qual legado para as novas gerações. E aí, se me permitem, penso imediatamente no Miguel, o meu querido neto, e em todas as crianças da sua geração. E, para adoçar a trégua, a música discorre, a gosto, alimentando a convicção.
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14 comentários:

  1. Oxalá ele aprecie cada momento, muitas vezes só mais tarde percebemos esses momentos e como foram felizes.
    ~CC~

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  2. Belo lugar, esse, para o Miguel conviver com a terra (em mais de um sentido!). Por aqui, atrevidos andam os pardais, que aparecem para comer até a ração dos cachorros, embora, por ser outono, haja muita fruta silvestre à disposição.
    Um abraço, tenha uma ótima semana!

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  3. Eu tenho a sorte de ter conhecido os dois mundos, e agora, posso dizer que o Miguel será hoje um menino feliz e amanhã um homem com muito mais sensibilidade ao mundo que o rodeia.

    Boa noite, sô AC
    Avô babado e exímio contador de histórias reais.

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  4. Nesse dia, de há uma semana e alguns trocos.- que imagino queiras dizer mais uns dias - limitaste-te a ser o observador que, por detrás das vidraças, embalado pelo som apaziguador de uma música a gosto, foste deitando contas às coisas que te são caras, sem deixar de perscrutar o ar em demanda de alguma ave de rapina, não viesse ela em voo picado, deitar as garras a algum frango que por ali andasse descuidado... :)

    Muito tem o teu Miguel para aprender com o Avô... Assim hajam oportunidades de o teres aí contigo, nas férias grandes. :)

    Um abraço, AC!

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  5. Deixei-me leva na leveza deste teu texto e o Miguel com toda a certeza irá querer aprender o lado bom e fácil da vida mas com regras/responsabilidade e amor.

    Beijos e uma boa semana

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  6. E aquele rosmaninho todo à volta da árvore deve dar um aroma especial ao terreno. E oxalá o Miguel venha a herdar do avô não só o gosto pela natureza mas também a poesia da escrita.
    Abraço, saúde e uma boa semana

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  7. Um pedaço de terra para deixar ao neto Miguel juntamente com todos os ensinamentos sobre o respeito por todos os seres que a Natureza tão generosamente nos oferece. Magnífico este seu texto. É sempre um gosto ler o que escreve.
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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  8. Poder usufruir dessa paisagem todos os dias é um privilégio.

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  9. É uma graça apreciar as coisas belas!
    Um abraço

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  10. Fiquei com a alma lavada, como sempre fico ao ler o que escreve, AC.
    Respeitar a natureza dá seus frutos. O seu neto será decerto, o futuro guardião dessa bela herança.

    Grande abraço!

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  11. Tão bonito!
    Hoje menino, amanhã homem o Miguel vai de certeza ser grato por tudo aquilo que o avô lhe deixa e lhe ensinou.
    Sempre bom chegar aqui.
    Abraço*

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  12. Também gosto de acompanhar o andamento da tua horte. Ah! e a chuva deve tê-la deixado luminosa e com ar de boa colheita.
    Adoro caminhar a seguir à chuva. O cheiro a terra molhada e a frescura da natureza entusiasmam.

    Beijos, amigo AC.

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  13. Preciosos estes momentos em contacto com a natureza... que lá vão dando bem mais sentido, a este nosso caótico mundo...
    Estimo que os granizos da outra semana, não tenham feito estrago por esses lados... mas creio que foi mais a Norte, para os lados de Vila Real...
    As noites de Junho, por estes lados, também já algum tempo que deixaram de ser amenas... creio que o desaparecimento de uma grande área do pinhal de Leria, com os incêndios, de alguma forma, também terá contribuído para uma mudança no clima na zona Centro do nosso país... mais árido e ventoso...
    Mas enfim!... O cheiro a terra molhada, continua a manter o seu encanto... e a devolver um novo vigor, ao que ainda se vai aguentando de áreas verdes... aí, como aqui...
    Tem uma vista incrível, AC!... Grata por estas partilhas, tão especiais, que nos dão a conhecer, os encantos das suas Serras...
    Beijinho!
    Ana

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