domingo, 16 de novembro de 2014

CRONIQUETA DUMA MANHÃ DE SÁBADO

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Imagem tirada da Net
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A chuva, imune a injustas reclamações, conjuga o verbo persistir. 
Espreito, por detrás da vidraça, uma aberta, uma pequena folga que seja, e dirijo-me para o lado dos pinheiros. As gotas que escoam dos ramos, a dar o melhor delas, ainda me piscam o olho, mas falta-lhes o delicado toque solar, caleidoscópico porto de embarque para outra dimensão. Não, hoje não há milagres, as botas teimam em resmungar contra o terreno demasiado mole.
Tu bem perguntas para onde vou, mas raramente sei para onde. Não, hoje não há milagres, apenas sobram pequenas certezas. Hoje, com a tal música como pano de fundo, vou dialogar com a lareira.
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domingo, 9 de novembro de 2014

DELONGAS NO ESVOAÇAR DE VERDADEIRAS ASAS

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Tarde de domingo. Rompendo por entre as nuvens, um raio de sol ousa temperar o frio, que já se faz sentir nos ossos, mensagem amiga para retardar o acender da lareira.
Tinha acabado a faina que envolveu sal, alho, louro, orégãos e cascas de citrinos, retoque final na conserva de azeitonas retalhadas. Com o ar de satisfação das coisas feitas, passo ao lado da nespereira, árvore com obscuro contrato primaveril, e ouço as abelhas. Sustenho a respiração. Dentro de mim dispara a tecla da sempiterna maravilha.
Volto atrás para me socorrer da máquina, procuro-as, mas elas são esquivas. No cerimonial do seu labor, um intruso é sempre um intruso.
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Insisto, envolto por inteiro na perfeita laboração. E, de tanto me imiscuir, dou-me conta que me legaram um labirinto.
Sorrio do óbvio. Quando olhamos para o que nos rodeia, e por mais que argumentemos com a nossa inteligência, a ignorância, ainda que por vezes aveludada, é o que melhor nos caracteriza.
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Fotografias de AC
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sábado, 1 de novembro de 2014

ACERCA DO DEPURAR DAS TEIAS

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 Hélio Cunha, Antemanhã


Há um círculo onde te resguardas, tecido na linguagem das letras, quase sempre no breu, com ténue vislumbre dum raio solar.
Há um silêncio que perdura nos livros que guardas, fogo latente até à eternidade.
Há algo em ti, por mais que labirintes, que me leva a chamar-te amigo.
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domingo, 26 de outubro de 2014

ETERNO FEITIÇO EM QUARTO CRESCENTE

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Margarida Cepêda, Lua crescente
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Quando a noite
eterno e sedutor mistério
envergava as melhores vestes
hálito frio de inconfessáveis temores
aconchegava-te a mim
consagração palpável do fruto
e esconjurava gigantes e duendes
bruxas e princesas
heróis e vilões.
Sentia cada movimento do teu corpo
cada alteração do respirar
almofada visceral
em eterno confronto 
com o humor das ondas.
Quando acordavas
sol intenso adornado de flores
o teu olhar era o filtro do mundo
o teu sorriso o meu sorriso
breve trégua de apertado coração.
Depois
quando já soletravas sol e lua
comecei a levar-te para o quintal
e aí
teatro mágico de mil cenários
continuei a enfeitiçar-te
em incondicional rendição
às teias da minha voz:
era uma vez...
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domingo, 19 de outubro de 2014

DESCOBERTA

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Margarida Cepêda, Descoberta
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Mergulho repetidamente ao mais fundo de mim, pretensão fotográfica do turbilhão das águas. Tento captar o movimento, a densidade, mas em vão. Não há configuração, o padrão refaz-se a cada momento. E surge a constatação. Não sou onda, não sou mar, apenas ínfima gota à deriva.
Olho em volta e respiro o debater de outras gotas com o mesmo anseio. E então percebo. A realidade não é o resultado de um olhar, mas o somatório de muitos, unidos na mesma vontade. Temperado, de preferência, com esperança.
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Dezembro de 2010
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domingo, 12 de outubro de 2014

A CADEIRA

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Hélio Cunha, O anjo e a musa diante das ruínas da Europa
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Mantivera-se sempre à distância. Quando, por fim, se abeirou do cais, os barcos já enfunavam as velas, os porões prenhes de esperança. Não participara nos debates, não vira a construção das naus, não partilhara cuidados e sorrisos. Perdera o bilhete para a viagem.
Aguardou, clamoroso, de braço dado com o tempo, por sinais vindos do horizonte. Em vão. No cais, já carcomido pela ausência de sonhos, até as gaivotas pareciam reféns da velha tela perdida no sótão. Apenas a cadeira denotava algum brilho, apurado pela quente familiaridade do roçar das calças.
Quando vieram os turistas, entre algaraviares vários, ainda permitiu duas ou três fotos, mas há muito que perdera o rasto da alma. Por bom preço, acabou por vender a cadeira.
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sábado, 4 de outubro de 2014

MURMÚRIOS

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Fotografia de AC
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As nuvens e os homens teimam em repetir-se, em ciclos levemente retocados, ópera bufa de aparentes vontades várias.
Nos murmúrios do poeta, a solidão devia servir-se com asas.
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sábado, 27 de setembro de 2014

ÁGUAS

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Margarida Cepêda, Olhando para dentro
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 Os rios teimam em correr
acenando às árvores
alheios a cogitações de águas furtadas. 
Na barcaça
em contracorrente
ouve-se a velha canção:
todo o santo tem um passado 
todo o pecador tem um futuro.
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domingo, 14 de setembro de 2014

REGRESSO

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Não vou dissertar sobre as pausas, mas elas são necessárias. O que importa é que estou de volta.
Obrigado a todos os que perguntaram.
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sábado, 19 de julho de 2014

O PERFEITO IMPERFEITO

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Pintura de Margarida Cepêda
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Ainda me lembro, mãe, quando, nas manhãs de nevoeiro, insistias em desfolhar malmequeres. As flores, em carícia permanente, eram auscultadas em gestos cerimoniais, cada pétala que tiravas era um pouco de névoa que se ia. E continuavas, em gestos de eterno perfil, até os medos se desprenderem. Era então chegada a hora de libertar os barcos, de soprar as velas que enfunavam os sonhos.
Quando partiste, em perfeito alinhavado com o imperfeito, ainda era a delicadeza dos gestos que bordava o esboço do teu eterno desfolhar. Só eu via, mas tu continuavas a sorrir.
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