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..."Gosto das coisas simples, de sentir o ar que respiro..."
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Há anos que não se viam. A última vez tinha sido no almoço comemorativo do curso, já lá iam uns bons dez anos. O Pedro parecera-lhe bem mas, ao contrário do que acontecia frequentemente nos tempos em que eram dois estudantes ávidos de abraçar a vida, não conseguiram criar o clima propício a grandes conversas. Ele falara-lhe vagamente da filha, da escola onde trabalhava, e pouco mais. Nem sequer falara de pintura, a sua menina dos olhos de outros tempos. A vida tinha-os afastado, era notório. Longe iam os tempos em que se julgavam únicos e confidenciavam projectos, anseios, sonhos...
Quando o sistema de colocação de professores os separou, rasgaram ao meio uma nota de quinhentos escudos e cada um ficou com metade, para gastarem quando se reencontrassem. Porém, apesar desta espécie de promessa de amizade eterna, a pouco e pouco foram perdendo o contacto. Ainda se cruzaram algumas vezes, sempre disponíveis e confiantes, mas as novas pessoas e geografias com que se foram deparando acabaram por afastá-los irremediavelmente.
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Carlos costumava passar, quase todos os anos, uns dias numa praia lá bem a sul, onde as elevadas temperaturas e a luz dourada convidavam à moleza e ao desprendimento. Era o perfeito dolce fare niente, depois de um intenso ano de trabalho. Começara a ir para ali quando os filhos ensaiavam os primeiros passos, e eles deram-se bem com a suavidade daquelas ondas e a macieza do extenso areal. Entretanto cresceram, começaram a cortar os primeiros assomos de barba, mas ficou sempre o hábito de ir para aquele local protegido e afável. De vez em quando viajavam até outras latitudes, mas a ida para a luz do sul era sagrada.
No último Verão, sentado numa esplanada, ao deleitar-se com uma fresquinha enquanto passeava os olhos pelo jornal, Carlos foi surpreendido por uma voz que lhe pareceu familiar: era o Pedro. Engordara um pouco e os cabelos começavam a ficar grisalhos, que as marcas do tempo não esquecem ninguém, mas conservava o mesmo sorriso franco e aberto.
Que fazes aqui, como é que estás, senta-te...
O Pedro continuava a viver nas imediações do Montejunto, onde constituíra família. Enquanto os pais foram vivos ainda foi mantendo alguns laços com o torrão natal, mas depois da sua morte esses contactos esbateram-se por completo. Mas continuava a ter a Beira no sangue. Via à distância, com tristeza e desânimo, o esvaziamento cada vez maior do interior, e não entendia como é que, numa região tão depauperada e esquecida pelo poder político, as pessoas teimavam em não se unir num objectivo comum, preferindo dar guarida a vaidadezinhas e egos balofos. Às vezes sentia vontade de regressar, de respirar os cheiros dos lugares onde se fizera homem, de pagar a dívida ancestral, mas...
Continuaram a falar pela tarde fora, enquanto iam deglutindo os sabores de Verão em pratinhos bem guarnecidos. Lentamente a tampa do baú começou a abrir-se e, de forma natural, as memórias de acontecimentos, pessoas e paisagens começaram a esgueirar-se. A gargalhada tornou-se fácil, espontânea, e a cumplicidade de outrora insinuou-se.
No final, quando pediram a conta, puxaram da carteira e, com um sorriso estampado no rosto, cada um colocou, em cima da mesa, metade da velha nota de quinhentos.
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reedição
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Há anos que não se viam. A última vez tinha sido no almoço comemorativo do curso, já lá iam uns bons dez anos. O Pedro parecera-lhe bem mas, ao contrário do que acontecia frequentemente nos tempos em que eram dois estudantes ávidos de abraçar a vida, não conseguiram criar o clima propício a grandes conversas. Ele falara-lhe vagamente da filha, da escola onde trabalhava, e pouco mais. Nem sequer falara de pintura, a sua menina dos olhos de outros tempos. A vida tinha-os afastado, era notório. Longe iam os tempos em que se julgavam únicos e confidenciavam projectos, anseios, sonhos...
Quando o sistema de colocação de professores os separou, rasgaram ao meio uma nota de quinhentos escudos e cada um ficou com metade, para gastarem quando se reencontrassem. Porém, apesar desta espécie de promessa de amizade eterna, a pouco e pouco foram perdendo o contacto. Ainda se cruzaram algumas vezes, sempre disponíveis e confiantes, mas as novas pessoas e geografias com que se foram deparando acabaram por afastá-los irremediavelmente.
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Carlos costumava passar, quase todos os anos, uns dias numa praia lá bem a sul, onde as elevadas temperaturas e a luz dourada convidavam à moleza e ao desprendimento. Era o perfeito dolce fare niente, depois de um intenso ano de trabalho. Começara a ir para ali quando os filhos ensaiavam os primeiros passos, e eles deram-se bem com a suavidade daquelas ondas e a macieza do extenso areal. Entretanto cresceram, começaram a cortar os primeiros assomos de barba, mas ficou sempre o hábito de ir para aquele local protegido e afável. De vez em quando viajavam até outras latitudes, mas a ida para a luz do sul era sagrada.
No último Verão, sentado numa esplanada, ao deleitar-se com uma fresquinha enquanto passeava os olhos pelo jornal, Carlos foi surpreendido por uma voz que lhe pareceu familiar: era o Pedro. Engordara um pouco e os cabelos começavam a ficar grisalhos, que as marcas do tempo não esquecem ninguém, mas conservava o mesmo sorriso franco e aberto.
Que fazes aqui, como é que estás, senta-te...
O Pedro continuava a viver nas imediações do Montejunto, onde constituíra família. Enquanto os pais foram vivos ainda foi mantendo alguns laços com o torrão natal, mas depois da sua morte esses contactos esbateram-se por completo. Mas continuava a ter a Beira no sangue. Via à distância, com tristeza e desânimo, o esvaziamento cada vez maior do interior, e não entendia como é que, numa região tão depauperada e esquecida pelo poder político, as pessoas teimavam em não se unir num objectivo comum, preferindo dar guarida a vaidadezinhas e egos balofos. Às vezes sentia vontade de regressar, de respirar os cheiros dos lugares onde se fizera homem, de pagar a dívida ancestral, mas...
Continuaram a falar pela tarde fora, enquanto iam deglutindo os sabores de Verão em pratinhos bem guarnecidos. Lentamente a tampa do baú começou a abrir-se e, de forma natural, as memórias de acontecimentos, pessoas e paisagens começaram a esgueirar-se. A gargalhada tornou-se fácil, espontânea, e a cumplicidade de outrora insinuou-se.
No final, quando pediram a conta, puxaram da carteira e, com um sorriso estampado no rosto, cada um colocou, em cima da mesa, metade da velha nota de quinhentos.
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reedição
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Caro Agostinho!
ResponderEliminarConheço esta ou outra história parecida. Coincidência ou não, acabei de colocar no meu blogue uma análise sobre o estado do País. Onde, tenho a certeza, de que falta a questão da desertificação e das assimetrias regionais, que os nossos políticos sem visão estratégia e prospectiva, não alcançam que uma Nação só se torna coesa se for igualmente desenvolvida. Onde não haja diferenças, abissais, entre zonas ricas e zonas deprimidas.
Vamos continuar a falar destas coisas porque o País precisa e nós temos o dever de cidadania de intervir da forma como pudermos, para além do depósito do voto em dia de eleições.
Abraço amigo
Caldeira
Zé Caldeira,
ResponderEliminarDeves conhecer, pois esta história publiquei-a há uns meses atrás, e achei por bem reeditá-la agora.
Abraço.
AC ainda bem que a reeditaste. Esta história aborda muitos dos problemas deste povo. Fizeste um retrato curto mas real do povo da Beira: não entendia como é que, numa região tão depauperada e esquecida pelo poder político, as pessoas teimavam em não se unir num objectivo comum, preferindo dar guarida a vaidadezinhas e egos balofos. Este povo é tal e qual o retrataste mas, ao contrário de ti, penso que é o retrato do povo português. Um povo cada vez mais desunido, cada um puxando a brasa à sua sardinha, esquecendo o bem colectivo. Pena que não consigam perceber que não será assim que este país se consegue levantar e que é assim que os oportunistas conseguem os seus objectivos. A união faz mesmo a força, não percebem e continuam a não se querer comprometer para não perderem os benefícios que possam vir a ter.
ResponderEliminarAbraço
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ResponderEliminar. e a nota de quinhentos manteve o seu valor maior .
. no câmbio intrínseco de uma amizade que se e.ternizou no tempo, e que hoje é alento para vasculhar os sotãos das almas em expansão .
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. gostei muito .
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. paulo .
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Há nessa nota de quinhentos uma simbologia tocante.
ResponderEliminarJá tinha lido, mas não comentei na altura.
Parabéns, amigo!
Abraço
Para além do simbolismo da nota de quinhentos, toca-me muito a facilidade do reencontro e a naturalidade das conversas. Tenho esse tipo de experiência com uma amiga de infância. Por muitos anos que estejamos sem nos ver e praticamente sem falarmos, quando nos reencontramos a conversa flui como se nos tivéssemos visto no dia anterior.
ResponderEliminarLinda história! Gostei imenso;o)Será autobiográfica?
ResponderEliminarParabéns pelo estilo e maneira de contar.
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Beijo e feliz semana*******
Oi!
ResponderEliminarAh... reencontro, é muito bom reencontrar velhos amigos, e realmente a vida e o tempo nos levam a tantos caminhos !
Bjs!
Ser Estranho Ser!
O reencontro é a essência, mas o contexto deu um sabor especial à história, porque tornou-a verossímel.
ResponderEliminarNão foi só reencontro de pessoas, mas de raízes.Não importa para onde a gente vá,levamos nossa origem na alma,mesmo que doa.
Beijos.
Reencontros assim são mais que bem vindos, gostaria que as pessoas se perdessem menos, algumas têm vergonha de falar conosco após anos afastadas, acho triste porque compreendo bem que a vida as vezes nos tira da rota, então sempre me alegro com a volta, não importa o tempo.
ResponderEliminarParabéns pelo texto!
Faço de Luísa as minhas palavras.
ResponderEliminarBelo conto sobre a arte do reencontro! ;-)
Obrigado pela visita em meu blog!
Reencontro é uma palavra que me estremece por dentro, confunde minha vaga noção de espaço, de tempo desapercebido. Fiquei trinta anos sem ver meu pai, AC. E o reencontrei , maravilhada. Você saberia escrever algo assim . Eu sinto o que reencontraram suas personagens.
ResponderEliminarbeijo!
que lindo seu texto, uma viagem, estive sentada na mesa ao lado, observando os dois amigos, que gostoso o sabor do reencontro, da amizade, que mesmo depois de ano, ainda é a mesma.
ResponderEliminarEstou feliz que tenhas vindo me visitar, espero que volte.
Tenha um lindo dia
abraços
Cris França
Canto de Contar Contos
Tenho uma história parecida de reencontro, quando nos vimos fez-se o clique o meu coração transbordou de recordações, é lindo.
ResponderEliminarBjs
Também gosto das coisas simples...
ResponderEliminarAmei o post... aiai, muito lindo!!
Obrigada pela visita ao meu blog, volte mais vezes... Amei o seu cantinho, gostei muito daqui. Voltarei sempre!! *-*
bjos'
que lindo texto, lindo blog, adorei, já estou seguindo :)
ResponderEliminarbeijos...
Existe uma voz muda que sempre berra a direção certa dos desejos surdos chamada instinto. É isso que essa metade da velha nota de quinhentos representa.
ResponderEliminarBeijooO
Só consegue ser feliz quem aprecia as coisas simples, não é AC? Que bom você ter reeditado o post! Pude apreciar um brilhante texto , cheio de lirismo e com uma bela mensagem de uma grande amizade.Muito lindo! Parabéns!!!
ResponderEliminarUm beijo amigo.
Seu blog já está na minha lista de preferidos.
Também gosto de coisas simples... e desta escrita fluída. Não pude deixar de esboçar um sorriso no final. É muito bom quando se podem juntar duas metades.
ResponderEliminarBeijos
Querido amigo AC, obrigada pelo carinho, eu escrevo umas coisas quando estou magoada que arrepia, mais de tanto amar as vezes pensamos que estamos fazendo algo errado... ou não aceito, e ai sai essas coisas pesadas, mas já passou, busco a fonte de equilibrio, Jesus!
ResponderEliminarEu não sei bem do teu dinheiro, sei o País passa por dificuldades, mas é normal altos e baixos na ecônomia, logo ficará tudo bem tb.
Reencontro é muito bom, e reforça os laços afetivos que fazemos pela vida a fora. Beijos no ♥ do amigo.
Pois...eu já tinha lido este conto e gostei muito. Na altura despontava um Agostinho de alma grande. Hoje, que julgo já o conhecer bem,é o escritor de livro feito e cheio de leitores.E bem merece.Que bom, amigo, ter assistido a este percurso.Vou guardar metade deste texto...
ResponderEliminarAcho lindo conseguir descrever passagens e sentimentos. Aprecio demais os escritores.
ResponderEliminarBoa semana para ti.
penso que os reencontros dependem do olhar das pessoas. Ao reencontrarmos alguém que está a olhar para outra direção, não há reencontro, vemos um estranho distante. Quando um olha para o outro e abre-se para aquele momento é que as memórias vêm à tona.
ResponderEliminargostei muito do conto!
obrigada por tua visita ao 'olhar'
um abraço
Que bom que reeditou! O reencontro, as amizades que não se apagam, mas não mais se apegam, a metade da nota... ficou perfeito.
ResponderEliminarBeijo meu
Olá Vizinho...a amizade não se compra com uma nota de quinhentos, mas partilha-se - a amizade com ela...gostei muito deste reencontro e da bela forma como nos é contado...parabéns! Um grande beijinho!
ResponderEliminarEu revivo sempre que a saudade me trás à lembrança os amigos de ontem, que são afinal de sempre, já que habitam o nosso coração.
ResponderEliminarMas quando o reencontro acontece, principalmente se inesperado, então a gente renasce no reviver dos tempos idos, quando a nota de 500 de um, era dos amigos todos se preciso fosse...
Gostei de ler-te AC.
Gosto sempre.
Beijo.
Olá,
ResponderEliminarPermita-me o "abuso"...
Através de um comentário seu num blogue, vim até aqui, e gostei do que já li, voltarei para ler mais se me for permitido...
Até lá Abraço dos Alpes
Uma história que mexe com emoções antigas, aviva a memória e fala de rencontros. Senti-me tocada em alguns bons momentos dela. A você agradeço as visitas ao Roxo, sempre amáveis e bem-vindas.
ResponderEliminarGrande abraço.
Tânia
Belo reencontro de amigos!
ResponderEliminarE aceitaram a nota de quinhentos?! :-))
Abraço
gosto de passar por aqui e te ler...essa sua maneira de escrever que faz bem!
ResponderEliminare tudo estava lá vivo naquela nota de quinhetos!
bjinhus...
quantas pessoas se perdem, quantas amizades ficam pendentes em " nota rasgadas", procuras de vidas melhores que nos locais de nascimentos são impossíveis de existir
ResponderEliminarBj
Gostei deste conto que retrata parte da história de duas vidas, iguais a tantas outras por esse mundo fora.
ResponderEliminarA vida obriga a separações de pessoas, às vezes dolorosas; bom é quando se dá o reencontro.
Uma noite feliz. Beijinhos
"Quando o sistema de colocação de professores os separou, rasgaram ao meio uma nota de quinhentos escudos e cada um ficou com metade, para gastarem quando se reencontrassem."
ResponderEliminarAssim espero fazer, um dia.
Bj
ADOREI...AS CIRCUNSTÂNCIAS DA VIDA MUITAS VEZES SEPARAM AS AMIZADES...MAS UMA NOTA DE QUINHENTOS VOLTOU A UNI-LOS...ESSA MANTEVE-SE...PARA LHES RECORDAR...
ResponderEliminarÉ PENA O OUTRO RETRATO...O ABANDONO DAS RAÍZES...
BEIJO
AC:
ResponderEliminarAida bem que reeditaste este conto. Coincidência ou não tenho andado nestes dois últimos meses em excurssões afectivas à procura e ao (re)encontro de mim através dos que partilharam comigo a infância,a adolescência e o início da juventure. Muitos são os 1ºs reencontros da e depois da nossa Diáspora.
têm sido momentos preciosos e proveitosos. A memória é um campo movediço, "lixado" porque enganador,mas muito interessante enquanto objecto e análise.
beijo