sábado, 6 de janeiro de 2018

LEVES ROTINAS, PROFUNDOS SENTIRES

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Luís Portugal, Uma semente
(A gravação não é das melhores, mas o timbre de quem sente o que canta está lá. E é destas coisas que eu gosto, fora dos corredores de quem decide e faz opinião)
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Havia um vislumbre de esperança para cá da encumeada, como se, de repente, fazendo negaças ao nevoeiro, algo permitisse que a terra sorrisse para a semente. Talvez fossem meras tréguas, talvez ilusão, mas era quanto bastava. Ansiava-se, acima de tudo, por um sinal, dum raio que golpeasse o marasmo, dum qualquer movimento que mantivesse a chama viva.
De fora chegavam alertas, como se a angústia tivesse a mesma forma e conteúdo em qualquer lugar. Mas, apesar de agitados, os mensageiros não se mexiam. Lá no fundo aguardavam por algo redentor, como que apeados de qualquer decisão. Entregavam o seu desígnio à mercê do que viam, mas não entendiam.
Continuo, convicto, a acariciar a terra, num ritual que me alheia do passar do tempo. De vez em quando surge a pausa, o olhar em volta. Na zona inculta, mais além, os rosmaninhos, apesar dos resquícios da murcha flor, mantêm-se vivos, embora sem viço, como que ganhando ânimo para o desejado esplendor; a poupa, cliente habitual, sempre sensível ao mínimo movimento, teima em debicar onde parece que nada há; os pardais, sinónimo de omnipresença, parecem alheios a qualquer movimentação, fadados que estão para se sentirem livres em qualquer lugar; lá em cima, em atalaia permanente, uma ou outra ave de rapina, em elegante planar, tenta descortinar algo que valha a pena um mergulho.
Às tantas retiro-me, devagar, como se cada passo transportasse algo de precioso. Decorridos uns metros, poucos, insinua-se o ritual: volto-me, apoio-me na enxada e olho, satisfeito, para a terra remexida. Agradeço, mentalmente, a harmonia concedida e, sempre devagar, dirijo-me para casa. Estava na hora do banho, duma boa refeição, dum bom vinho. Depois, quem sabe, talvez a lareira me seduzisse para folhear um livro, ao som duma música calma.
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23 comentários:

  1. Linda crônica e parece estar ali junto ao cenário descrito, apesar de estar numa praia...abraços praianos,chica

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  2. Fui lendo, devagarinho, voltando atrás, continuando...sempre com a voz do Luís como música de fundo, sentindo esta leitura como um retalho do teu quotidiano.
    Quando ouvia: "Se houvesse uma semente / que eu pudesse semear /
    eu faria um canteiro / no melhor do meu jardim / protegia-o da geada/ dava-lhe o sol a beijar / cuidava do meu canteiro /
    como se fosse de mim...", imagina-te olhando a terra com o mesmo carinho com que um pai olha o filho, acabado de alindar...

    Um lavar d'alma ler-te, A.C. :)

    Beijinho.



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  3. Ler-te é magnifico!
    Como os pardais sem receios dos movimentos.

    Feliz Ano Novo AC.

    Beijinho

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  4. A distância é enorme, mas, em se tratando de aves, tenho visto um cenário parecido: na última quinta-feira, presenciei alguns pássaros (sabiás) que tentavam afugentar um pequeno gavião que lhes ameaçava o ninho.

    Um abraço, continue a escrever. Tenha uma ótima semana!

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  5. Nossa... musica e texto... que coisa gostosa de ouvir e lendo devagar, vivendo cada frase escrita... um presente a musica, um presente o texto...

    Beijos...

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  6. E isto é plenitude, meu amigo!
    Felizes dos que a sabem colher!
    (A qualidade literária, essa é inalterável)
    Bjo, AC

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  7. Um dia cheio digamos, rico em rotinas que te enchem o coração e revigoram a alma. Muito boa noite AC.

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  8. Levou-me de volta a uma certa ruralidade que conheci em outros tempos da minha vida.
    Aquele abraço, boa semana

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  9. São os pequenos nadas da vida que nos encantam os olhos e alegram o coração. Abraço.

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  10. Comecei por ouvir Luís Portugal, "Uma semente". Lindíssimo! O seu texto lembrou-me como é quase "redentor" mexer na terra por sabermos que somos barro...
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  11. Rotinas que nos preenchem e acabem bem.
    Gostei muito de ouvir a música.
    Boa semana.
    beijinhos
    :)

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  12. Sem perderes nenhum detalhe, o texto (talvez escrito à lareira) mantém a chama viva.

    Muito cálido, AC!
    Beijinho.

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  13. Uma crônica encantadora nos
    gestos simples e preciosos com
    o tempo no espaço interior.
    Apreciei conhecer a música
    do Luís Portugal, muito bela!
    Beijo.

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  14. E de que precisa mais um homem, senão
    o estar em harmonia com a natureza,
    reconhecer-se parte dum mundo por tocar?

    E se desse mundo, arado de pautas, brotarem,
    por cúmulo, as melodias que amaciam o sentir?

    Abraço

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  15. AC ,um Ser que semeia a terra e as almas com a mesma sabedoria amor .


    Um beijo ,
    Maria

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  16. Quase Torga...belo sentimento telúrico!

    Beijinho

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  17. Oi, A.C. momentos que valem viver;preciosos em sua textura leve de existir.
    Um abraço

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  18. Isso é mesmo de um agricultor moderno e culto. Antigamente ficavam-se pelo vinho até aterrarem na cama. Livro e lareira parecei-me bem! Especialmente com este frio.
    Abraço, um lindo domingo de harmonia com a terra
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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  19. Eu é que agradeço mentalmente, e hoje literalmente... a harmonia concedida... após a leitura de mais um dos seus encantadores textos, AC!...
    Beijinho! Feliz Domingo, e uma óptima semana!
    Ana

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  20. O AC é um senhor muito sábio, é o que é. Conhecedor da terra, da natureza e de quase todos os segredos que ambas encerram. Muito caminho percorrido, ora com papel e caneta na mão, ora apoiado numa enxada.

    Boa noite, AC :)

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