quinta-feira, 29 de outubro de 2020

CONSIDERAÇÕES NO CAIR DA FOLHA

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AC, Início do recolhimento
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O sol vai-se inclinando, convidando ao recolhimento. As borboletas, contudo, continuam a pousar nas couves, depositando ovos e mais ovos, dos quais eclodem lagartas que, aproveitando o facto de eu não utilizar produtos químicos na horta, vão deglutindo folha após folha, conferindo ao conjunto um rendilhado a que, confesso, não acho muita piada. Se elas as comem, não as como eu nem os meus. Rendo-me à evidência.
As folhas das árvores, entretanto, vão caindo, começando a estrumar o solo para a ressurreição do próximo ciclo. Enquanto passeio, olhando para a configuração do mosaico cromático, o pensamento, com toda a naturalidade, começa a soltar-se. E, a propósito sabe-se lá do quê, evoco as palavras adolescentes dum papel amarelado descoberto uns dias antes, aquando dumas arrumações: "Não sei quem tu és, mas imagino-te. És alguém para quem eu esteja, sempre, disposto a dar e receber tudo, TUDO!" Assim mesmo, com ponto de exclamação, e a última palavra reforçada com maiúsculas. 
Não posso deixar de sorrir, pensando na veemência do "tudo" na convicção dum adolescente. E, quase em modo automático, relembro a quebra da espontaneidade nas crianças à medida que vão crescendo, para a associar ao soçobrar das convicções juvenis aquando do embate com a realidade.
Crescer é mesmo assim, dir-me-ão alguns. Certo, mas é também aí, para os menos acautelados, que começa o declinar dos sonhos. E, não tendo estrutura para aguentar o embate, a pessoa definha, como uma planta com pouca água, limitando-se a tentar sobreviver.
Um sonho tem que ser coisa viva, associada à lucidez, e defendido como coisa preciosa, roupa imaginária da qual nunca nos poderemos libertar. Para isso há que desafiar os medos, os tais que, na sombra, caminham sempre connosco, definindo muito do caminho a trilhar: ou cedemos, prescindindo daquilo que poderá estar para lá da próxima curva, ou seguimos em frente, ousando enfrentar o labirinto de sombras que nos tenta cercear os passos, acenando com artificiais zonas de conforto. São uma luta constante, os medos, e deles não há memória dum confronto leal. São insidiosos, traiçoeiros, sempre prontos a explorar as fraquezas do caminhante, semeando tentações sem fim. É por isso que, à chegada, embora de bem com o universo, o vencedor da caminhada é um solitário. Porque poucos o conseguem.
Na horta, indiferentes a considerações humanas, as lagartas continuam, num manjar silencioso, a rendilhar as couves.
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20 comentários:

  1. Qual borboleta, o pensamento voa e vai pousando de folha em folha, no livro da memória em recordações libertadoras. E não, não é essa borboleta branca que vai deixando as tuas couves infestadas dos ovos prejudiciais à horta...
    Falas em medo, nesse medo castrador do avanço e da vontade de ir à luta, de teimar na perseguição de sonhos.
    Há medos que até nos tiram o sono, AC.

    Imagina uma criança pequena, que assista pela primeira ao ladrar furioso ou não, de um cão perto de si, e fica aterrorizada a ponto de acordar a meio da noite e ficar sentado na cama de olhos abertos na penumbra do quarto. Aconteceu ao meu pequeno Noah...Pela vida fora há tantos, tantos medos que temos de aprender a combater...

    Excelente crónica a tua, sempre nos levas a algum lugar, AC. :)

    Obrigada e um abraço.

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  2. É verdade, é preciso manter o sonho vivo, ainda que com os pés bem assentes na terra. Mas nem sempre é a falta deles que nos derrotam. Serão, penso eu, mais nefastos, os pesadelos que a vida nos trás e teima em manter.
    Crescer/viver não é fácil.

    Boa noite, sô AC

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    1. Os pesadelos são consequência dos medos, Noname.

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    2. Não me refiro ao pesadelos (sonhos maus) mas, aos outros que a vida traz, estando nós bem acordados.

      Bom fim de semana :)

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  3. Borboletas roendo as couves? São Pieris brassicae, suponho. Perdoe não usar itálico na nomenclatura binomial, mas não sei como poderia fazê-lo aqui no comentário. Afinal, não importa. Lá se vão as couves, e, embora ache graça na dança das borboletas, também não tenho nenhuma alegria quando vejo algumas delas na horta.

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  4. Caminhemos com cautelas mas sem medos!
    Aquele abraço, bfds

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  5. AC

    mais uma bela crónica, e no final, ao ler o que cito fiquei a sorrir
    cito
    " as lagartas continuam, num manjar silencioso, a rendilhar as couves."
    malvadas;)

    bom fim de semana.
    beijinhos
    :)

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  6. Filosofando sobre a vida e sua passagem pelo tempo...por um tempo pensei que estavas a mim dirigindo ou foi linha cruzada pelo telefone das idéias.
    Um abraço

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  7. Excelentes considerações em uma bela crônica. O medo surge com a consciência e com a necessidade de enfrentarmos as lutas que, sem dúvida, nos acompanharão por toda a vida. Abraço.

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  8. Também "não sei quem tu és" mas para mim Tu deves ser um grande MESTRE na tua profissão e felizes daqueles que contigo privaram dessa sabedoria.

    Vou contar-te um pequeno episódio tinha a minha filha mais nova uns 3/4 anos. Era fascinada por fósforos e fartei-me de ralhar com ela. Um dia deixei-a fazer o que queria e fez, fez e eu a observar...até que conseguiu acender e claro queimou um dedo. Remédio santo e ainda hoje se lembra dessa cena.

    Quanto às couves e as belas lagartas:))) os peritos dizem para se pôr cinza das lareiras claro frias:)))

    Um enorme abraço AC e realmente tens os pés bem assentes na terra

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  9. Poeta , amei seu post , como sempre .
    Quanto ao medo que nos acompanha lembrei-me da declaração do filósofo Thomaz Hobbes : " Minha mãe pariu gêmeos , o medo e eu ".
    Beijos

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  10. Há sempre lagartas a roer os sonhos. Convém ignorá-las e seguir adiante como os olhos fulgurantes de um adolescente.
    Belo texto, AC!

    Beijo. :)


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  11. Os medos existem para serem combatidos
    Abraço

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  12. Quando comecei a ler deu-me vontade de rir; então não é que ando com o mesmo problema e não chegam as lagartas, vieram também os caracóis…
    Coitadas das couves.
    Boa semana

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  13. Continuar a sonhar mesmo quando as sombras nos perseguem. Mesmo as folhas caídas parecem lançar ao vento as nossas angústias. Mesmo quando há lagartas matreiras a rendilhar o que acreditamos ser nosso. Continuar a sonhar porque há sempre um verso de amor amarelado a lembrar-nos que a adolescência se repete sempre que o coração deseja... Um texto fabuloso!
    Cuide-se bem e tenha uma boa semana.
    Um beijo.

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  14. Costumam dizer-me que sou uma sonhadora. Que isso já não se usa. Que as pessoas são demasiado terra a terra para acreditarem em sonhos.
    Pois eu continuo a sonhar. Que o sonho faz-me melhor. Faz-me ver a realidade, do que afinal é, e do que eu gostaria que fosse.
    Sem sonhos somos pessoas ocas. Lagartas que não viram borboletas.

    Um abraço e sonhe sempre.
    ... e já agora cuide-se!

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  15. Uma crónica muito interessante. Sonhar é preciso. E tão essencial à nossa vida como a luz do sol. Quando se perde a capacidade de sonhar a vida deixa de existir, mesmo que nós continuemos a arrastar-nos como lagartas.
    Abraço e saúde

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  16. Adorei o texto, AC!!! É isso... os sonhos precisam ser tão protegidos... como as folhas de couve!... :-))
    E às vezes pequenos truques resultam... Pulverizar gel de banho, dissolvido em água, nas folhas!... Pulgões e lagartas... não gostam de se sentir... lavadinhos, nem o ambiente por onde andam!... E sempre é bem melhor, do que o uso de outros químicos ... é questão de fazer um pequeno teste... resulta para cochonilha de laranjeira/limoeiro também...
    Abraço! Continuação de uma boa semana!
    Ana

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  17. As ruídas, assim como os sonhos realizados têm que se renovarem sempre para dar sentindo à vida. Estava com saudades de ler esse colorido de vossa escrita, amigo AC.

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  18. AC, neste momento, como nunca, valem-nos os sonhos pois a realidade é dura e tem de ser bem acautelada. Crescer está bem, mas nunca deixar de sonhar.
    Boa noite AC

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