sexta-feira, 9 de abril de 2010

A MORTE LENTA

.Imagem tirada daqui.
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Sentado em frente ao lume, Felismino ouvia o silêncio. Do curral vinha o eco quase imperceptível de meia dúzia de cabras que, para além da companhia, proporcionavam ao velho o leite necessário para fazer um ou outro queijo.
Às vezes sentia falta de dois dedos de conversa, mas habituara-se à solidão dos montes e à companhia dos animais. Os últimos habitantes da aldeia tinham partido ia já para cinco anos, e desde então vivia ali sozinho. Queriam à viva força que fosse com eles, que havia de se arranjar jeito de ficar num lar, mas ali era a sua casa. Ali nascera e ali haveria de morrer. Nunca chegara a casar, e não havia nada fora daquele mundo que chamasse por ele.
Tirou da panela o caldo acabadinho de fazer, encheu uma tigela e esperou que arrefecesse um pouco. Lá fora ouvia-se agora o ladrar dos cães, mas não ligou. Era bicho, com certeza, pois ali não passava vivalma, a não ser um ou outro caçador.
Bastava-se da horta e não precisava de muito. Uma vez por mês ia até à vila para receber a parca reforma e, entre dois copos na tasca do Pinto, aproveitava para se abastecer de arroz, açúcar, sabão, umas latitas de conserva e pouco mais.
Há dois anos chegara a ter a companhia duns alamães que para ali vieram viver, à espera de encontrar não se sabe bem o quê. No princípio pareciam entusiasmados, mas fora sol de pouca dura. Conforme chegaram, assim partiram. Não estavam preparados para aquilo, o bicho homem precisa da companhia de outros homens.
Quando acabou de comer foi até lá fora. A noite estava fria e adivinhava-se geada. Apertou melhor o casaco e foi espreitar as cabras, aninhadas no curral. Estavam sossegadas. Depois puxou da onça e começou a enrolar um cigarrito, companhia solitária de todas as noites.
A morte não o preocupava. Sabia que tinha que ir um dia, e já tinha vivido o suficiente para aceitar o inevitável. E queria deixar os ossos naquele ermo, onde os animais nasciam e morriam respeitando a ordem natural das coisas. Era assim que entendia o mundo.
No céu via-se o brilho duma ou outra estrela. Os cães, sentindo algo no ar, abeiraram-se dele à procura dum afago. Na rua deserta era chegada a hora das sombras dos antigos habitantes ensaiarem a sua dança lúgubre.
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terça-feira, 6 de abril de 2010

UMA MÃO CHEIA DE NADA

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A vida corria-lhe bem. Sabia aplicar tudo o que ganhava, e o património ia aumentando. É verdade que, em nome da causa em que se tinha empenhado, ia protelando a relação com os que lhe estavam mais próximos, mas o sucesso dava-lhe força e convicção. E continuava. E quanto mais continuava, mais protelava.
Quando parou para observar tudo o que tinha conseguido, requisitou os amigos para dar mais força ao seu orgulho. Mas, para seu espanto, apenas apareceram os de circunstância. Estava sozinho, e vociferou contra a injustiça e a ingratidão das pessoas.
Continuou a vociferar e, quanto mais o fazia, mais se colocava à distância dos outros, incapaz de perceber o mais elementar. Nunca aprendera que a alma não se alimenta de despojos.
Paz à sua alma.
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domingo, 4 de abril de 2010

PRIMAVERA

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Publiquei este poema, vá lá saber-se porquê, em Dezembro. Talvez fossem as saudades do sol. Mas hoje é Páscoa, o sol irrompeu logo pela manhã, e a disposição ressentiu-se. Para melhor. Como, apesar de tudo, continuo a acreditar no futuro, aqui fica de novo o poema. Porque todos precisamos de primaveras na nossa vida.
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Éramos jovens potros
Imunes ao receio
E a primavera de Vivaldi
Em harmonia vibrante
Era o primoroso retrato
Do nosso entusiasmo
No galopar sem freio.
A seara ondulava, sensual
E viajávamos no sonho
Embalados no rumor da aragem
Que escrevia
Nas folhas dos freixos
Sinfonias à nossa passagem.
A paixão das cigarras
Morava dentro de nós
E a linha do horizonte
Meta por conquistar
Era a tela
Dos planos traçados
Dum mundo por desbravar.
Adormecia nos teus braços
Em nocturno de Chopin
Terna e doce vassalagem
E só o romper da aurora
Rebate do mundo lá fora
Quebrava o feitiço da viagem.
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sexta-feira, 2 de abril de 2010

SALTIMBANCOS

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Há uns anos atrás percorriam o país de lés a lés, e havia sempre um sítio qualquer onde faziam emergir a sua arte. Encantavam aqui, faziam rir ali, e no dia seguinte lá partiam com o quinhão possível, a paga de quebrarem um pouco a modorra dos dias sempre iguais dos locais por onde passavam.
Não gostavam de amarras, e pouco tempo permaneciam no mesmo lugar. Sentiam-se bem nas asas do vento e gostavam da companhia das estrelas. O amanhã não os preocupava.
Os tempos mudaram, e as maravilhas ambulantes começaram a ter a concorrência desleal das novas tecnologias. Hoje tudo se vê na televisão, na Internet. E está tudo tão à mão que as pessoas deixaram de sair, de conviver, de arejar. E quanto mais vêem as desgraças do mundo num qualquer telejornal, mais se fecham dentro de quatro paredes, como se esse gesto as preservasse das intempéries da vida. Deixaram de rir de si próprias, de dar crédito ao deslumbramento da fantasia, não reparando que, a pouco e pouco, se aproximavam mais do abismo. E os saltimbancos de outrora deixaram de maravilhar.
Mas, vá lá saber-se porquê, ainda os há por aí. Resistem ao tempo, tentando contrariar tendências irreversíveis, não sabendo viver doutra forma. Lutam por se sentir incluídos numa sociedade que os exclui, a todo o instante, por falta de calibragem num mundo formatado. No fundo consideram-nos marginais, esperando que se extingam por si próprios.
Há dias esteve numa escola um casal de resistentes. Em privado queixaram-se dos tempos, da indiferença das pessoas, falaram da luta travada para conseguirem comer. Mas quando chegou a hora do espectáculo, os lamentos desapareceram. Imbuíram-se da sua essência e maravilharam miúdos e graúdos, fazendo com que a plateia entrasse num patamar onde a gargalhada e o olhar de espanto ditavam leis.
No final, satisfeitos, agradeceram a atenção e a atitude do público. É que, para além do pão-nosso de cada dia, esta casta de gente também se alimenta de aplausos.
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sábado, 27 de março de 2010

A FLOR MURCHA

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O pai partira cedo. E, desde que se recorda de ser gente, habituara-se a ver na mãe um rochedo imenso, imune às intempéries. Aquela caixa-forte, sem aparente palavra passe, levara de vencida todos os escolhos da vida que se lhe foram deparando, construindo uma reputação de determinação e solidez.
Rita foi crescendo à sombra daquela imponência, demasiado assustada para perceber ou questionar. E a mãe, de tão ocupada que estava na sua luta, esquecera-se da matéria frágil de que é constituída uma flor.
Os anos passaram e, à medida que a lenda do rochedo se cimentava, também a fragilidade de Rita se acentuava. Quase irreversivelmente.
Um dia o tempo, inexorável, bateu à porta do rochedo. Este, vencedor de mil batalhas, sabia que o novo obstáculo era intransponível. E começou a fraquejar. Rita, que de tão frágil nunca chegara a entender a grandeza da mãe, escolheu o momento impróprio para amuar, atribuindo-lhe a sua fragilidade. E cultivou a distância.
O rochedo ficou à deriva. E só quando este se desfez em pó é que Rita percebeu que tinha perdido a oportunidade de se tornar uma flor viçosa. E que o caminho para a plenitude seria, a partir daí, muito mais longínquo.
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terça-feira, 23 de março de 2010

O NOME DAS COISAS

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Saltitava nas pedras
Pé ante pé
Para lá do ribeiro
E o canto do melro
Apelo irresistível
Conduzia os anseios
Do pequeno potro
Na descoberta genuína
Da vida em harmonia
Temperada em odores
De giesta e rosmaninho.
Não havia temores
Nas esguias veredas
Que levavam ao pinhal
E o mundo lá longe
Era aqui tão perto
Num fervilhar de vida
Em vão escondida
Em pleno céu aberto.
Sentia a voz da mãe
Inquieta com a cria
Mas os dias eram seguros
Na pacatez do lugar
Num mundo natural
Encostado às montanhas
Em que o nome das coisas
Forjado pelos deuses
Em feitiço profundo
Ainda era o mesmo
Das palavras ditas
No primórdio dos dias
Da criação do mundo.
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sábado, 20 de março de 2010

AFECTOS

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Um aviso prévio: este texto não é razão, é coração. É que esta semana as emoções andaram à flor da pele. Por várias razões. De entre elas, partilho convosco as manifestações de afecto e carinho com que fui brindado, principalmente por uns pequenos seres de quem sou responsável vai para quatro anos. Tive direito a missivas tocantes, música (Diogo, trata bem esse violino!), chocolates, perfume, bolo, e até o "Jerusalém", do Mia Couto, me veio parar às mãos. Como se não fosse pouco (e foi tanto!) também chegou até mim uma árvore, acompanhada das seguintes palavras:
"A um poeta, homem, "pai", professor!

Dar é reconhecer que se gosta. ...depois de algum pensar, decidimos dar-lhe uma flor. Só que há um senão, as flores murcham. Se ao menos elas fossem eternas! Então damos-lhe flores eternas, canto de tanto poeta, amendoeiras em flor!
Quando estiver no seu terreno a olhar para o horizonte, pelo menos uma vez no ano há-de lembrar-se..."

Que dizer perante isto? Creio que, nestas alturas, nada mais há a dizer que obrigado. Apenas. Porque o resto são sentimentos que teimam em ficar à flor da pele. E eu engasgo-me. Mas sinto. Muito! E reconheço-me na função de ser professor.
Acabei há pouco de plantar a amendoeira, e baptizei-a de Árvore dos Afectos. Com a esperança de que seja minha cúmplice para o resto da vida.
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segunda-feira, 15 de março de 2010

O VOO

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Para o João, ave em busca do seu destino
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Olhava para ti
Enquanto deslizavas
Em pleno deleite
Na graciosidade do voo
Olhando o ramo mais alto
Em sorriso primaveril.
O respirar era ágil
Na perfeição do pino
E o alto dos pinheiros
Limite da iniciação
Não escondia a ambição
Dum voar mais amplo
Que sonhavas no distante
Cenário do teu destino.
A segurança do ninho
Tecido com ternura
Já não te bastava
E lentamente sufocava
O enorme anseio
De tudo abraçar.
Quando sentia
À tardinha
O teu olhar no longe
E via o apelo
Desenfreado
Dos trilhos impossíveis
Sabia que nada
Mesmo nada
Te faria perceber
Que o longo braço da vida
Não tem distância
Mas equilíbrio
Em porfiada harmonia.
A partida era iminente
A favor ou contra a corrente
Alheia à palavra calma
Mas só tu poderias descobrir
Nas teias do porvir
O verdadeiro lugar
Da dimensão da tua alma.
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sábado, 13 de março de 2010

O PRODUTO

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Após alguns contactos do patrono, Júlio foi contactado pela editora. Que gostavam do seu trabalho, que já tinham planos para ele. Que estivesse tranquilo, que eles tratariam de tudo.
Passado algum tempo, começaram a aparecer uns artigos em determinadas revistas acerca do livro de um novo escritor, catalogado como um lenço de cores sugestivas. O público registou.
No dia do lançamento acordou ansioso, preocupado com o decorar do papel que lhe tinham destinado. Chegou ao local vestido com as cores do lenço da sua imagem, procurando ir ao encontro dos possíveis transeuntes do seu imaginário. Na sala ia-se formando um ajuntamento considerável, correspondendo ao apelo do lenço. Dois assessores, especialistas em sinais de lenços, alimentavam a turba. Falaram da qualidade do lenço e da importância das suas cores. A multidão, sequiosa do novo produto, fez fila para almejar a assinatura do novo autor.
A aventura durou enquanto o produto vendeu. Tempos depois, as revistas falavam dum lenço com novas cores. Nunca mais ninguém ouviu falar do Júlio.
Entretanto, seguindo a tendência da voragem, as calotas polares derreteram mais um pouco...
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sábado, 6 de março de 2010

O MEDO

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O mundo está feio. Feio e triste. Feio, triste e desesperado.
Olhamos em volta e, por mais que nos queiramos fixar em coisas positivas, o alastrar da nossa decrepitude já não se insinua, afirma-se. Deixámos de ter confiança no vizinho, no merceeiro, no político. Ninguém acredita em ninguém.
As instituições, destituídas de credibilidade, parecem seguras por arames; os valores de vida, meta elevada a preservar, diluem-se em interesses egoístas e corporativistas; a natureza, eterna mãe condescendente, esvai-se em queixumes estrebuchantes...
Os líderes passam a mensagem de dificuldades inultrapassáveis, do caos iminente. E o medo insinua-se, levando à irracionalidade, ao animalesco. E a luz da ideia, titubeante, enfrenta tempestades medonhas.
O caminho não passa por colocar um cartaz "Herói, precisa-se!", porque heróis seremos todos nós. Se conseguirmos. Caso contrário, basta um simples epitáfio. Colectivo.
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