sábado, 19 de julho de 2014

O PERFEITO IMPERFEITO

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Pintura de Margarida Cepêda
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Ainda me lembro, mãe, quando, nas manhãs de nevoeiro, insistias em desfolhar malmequeres. As flores, em carícia permanente, eram auscultadas em gestos cerimoniais, cada pétala que tiravas era um pouco de névoa que se ia. E continuavas, em gestos de eterno perfil, até os medos se desprenderem. Era então chegada a hora de libertar os barcos, de soprar as velas que enfunavam os sonhos.
Quando partiste, em perfeito alinhavado com o imperfeito, ainda era a delicadeza dos gestos que bordava o esboço do teu eterno desfolhar. Só eu via, mas tu continuavas a sorrir.
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domingo, 29 de junho de 2014

SUSTENTÁVEL LEVEZA

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Hélio Cunha, Vestígios de Um Mar Inexistente
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Sentias o fogo latente, o corpo a reclamar. A chama, incandescente, conduzia-te os sonhos, o peito era escudo onde tudo resvalava. Sentias a poesia na descoberta da noite infinita, na magia do despertar da aurora, na terra onde tudo continuava por lavrar. Intuíste novas palavras, novas linguagens.
Quando aprendeste a pousar, suavemente, no aroma das alfazemas, já sabias que tudo continuava por fazer. Mas passaste a sentir, quase sem te dares conta, o sereno sinal que da alma emana.
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domingo, 22 de junho de 2014

CIGARRADA EM TOM INCERTO

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Fotografia de AC
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Do alto do promontório, em olhar mil vezes ensaiado, as ilhas pareciam cada vez mais ilhas. Ali por perto, em caminhos de contramão, o velho amolador teimava em fazer-se anunciar pelo som da sua gaita. Ninguém o ouvia, mas algo o impelia a continuar. Talvez um dia, quem sabe, alguém parasse para ouvir das suas andanças...
Em grande écran, em esforço para cavalgares a onda, deslizavas, sorridente, por entre as brumas da nossa inquietação. Escolhias a música, sentias-te bem, não desafinavas. Não sabias que, do teu rodopiar, apenas emergia o vazio da origem das brumas.
Clic!
O tempo pára, nada se move. Incidindo sobre a tela, um leve feixe de luz começa por sugar as brumas, a seguir o promontório, por fim o amolador. Um invisível mestre de cerimónias parece emitir um sinal de aprovação.
Clic!
Cavalgas a onda, confiante, enquanto as máquinas disparam. À noite, antes de te deitares, apenas uma dúvida: Lexotan ou Prozac?
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sábado, 7 de junho de 2014

SALTO ALTO NA CALÇADA

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Paula Rego, Swallows the poisoned apple 
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Lias que a vida
Em sentido pleno
Sorria nas coisas simples
Mas passavas
Apressada
Sem tempo para estar
Sem tempo para ver
Em busca de tudo
Em busca de nada.
Procuravas-te
Em pilhas de livros
Conversas de bar
Pinturas criadas
No frenesim das palavras
(Às vezes gemias
Às vezes exultavas)
E com a luz fabricada
Traçavas cenários
A régua e esquadro
Da desejada verdade
Receita volátil
Sem sustentação
Castelos de cartas
Desfeitos no chão.
Quanto mais ouvias
Mais depressa passavas
(Paliativo da dor)
E nem reparavas
Na delicada sinfonia
Dum brinde à vida
Das cerejeiras em flor.
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Junho de 2010
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sábado, 31 de maio de 2014

CASTINÇAIS

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Fotografia de AC, Castinçais da Gardunha
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Inebriados pela exuberância da catedral verde, os deuses adornaram o caminho com fetos, musgos e restos de folhas secas, pintalgando, aqui e ali, uma abrótea, uma cravina, uma flor das sete-sangrias...
Fingia que te procurava mas, verdadeiramente, era por mim que ansiava. Convocava as minhas partes, sorria-lhes, mas havia sempre uma que se esgueirava por entre os castinçais...
Um pouco mais acima, por entre os penedos, o melro-azul, indiferente a humanas cogitações, continuava a tecer loas à vida.
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castinçais - rebentos de castanheiro
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sábado, 24 de maio de 2014

OS MUROS DO NOSSO (DES)CONTENTAMENTO

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Fotografia de AC
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A terra, as plantas, a água que, por vezes, apenas se insinua.
Entre o ir e ficar, uma vontade. Dentro da vontade, o desejo de fazer bem. Cumprido o preceito, dialogar. Com elas, connosco.
Com o tempo, imbuídos na alegação, elas vão argumentando, nós vamos cuidando vendo crescer. E também crescemos, apesar dos muros.
O fruto, corolário do envolvimento, é sempre sentença inacabada.
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domingo, 18 de maio de 2014

FELISMINO

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Fotografia de João Sargo
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Cabisbaixo, sentado frente ao lume, Felismino ouvia o silêncio. Do curral vinha o eco quase imperceptível de meia dúzia de cabras que, para além da companhia, proporcionavam ao velho o leite necessário para fazer um ou outro queijo.
Às vezes sentia falta de dois dedos de conversa, mas habituara-se à solidão dos montes e à companhia dos animais. Os últimos habitantes da aldeia tinham partido ia já para cinco anos, e desde então vivia ali sozinho. Queriam à viva força que fosse com eles, que havia de se arranjar jeito de ficar num lar, mas ali era a sua casa. Ali nascera e ali haveria de morrer. Nunca chegara a casar, e não havia nada fora daquele mundo que chamasse por ele.
Tirou da panela o caldo acabadinho de fazer, encheu uma malga e esperou que arrefecesse um pouco. Lá fora ouvia-se agora o ladrar dos cães, mas não ligou. Era bicho, com certeza, pois ali não passava vivalma, a não ser um ou outro caçador.
Bastava-se da horta e não precisava de muito. Uma vez por mês ia até à vila para receber a parca reforma e, entre dois copos na tasca do Pinto, aproveitava para se abastecer de arroz, açúcar, sabão, umas latitas de conserva e pouco mais.
Há dois anos chegara a ter a companhia duns alamães que para ali vieram viver, à espera de encontrar não se sabe bem o quê. No princípio pareciam entusiasmados, mas fora sol de pouca dura. Conforme chegaram, assim partiram. Não estavam preparados para aquilo, o bicho homem precisa da companhia de outros homens.
Quando acabou de comer foi até lá fora. A noite estava fria e adivinhava-se geada. Apertou melhor o casaco e foi espreitar as cabras, aninhadas no curral. Estavam sossegadas. Depois puxou da onça e começou a enrolar um cigarrito, companhia solitária de todas as noites.
A morte não o preocupava. Sabia que tinha que ir um dia, já vivera o suficiente para aceitar o inevitável. Queria deixar os ossos naquele ermo, onde os animais nasciam e morriam de acordo com a ordem natural das coisas. Era assim que entendia o mundo.
No céu via-se o brilho duma ou outra estrela. Os cães, sentindo algo no ar, abeiraram-se dele à procura dum afago. Na rua deserta era chegada a hora das sombras dos antigos habitantes ensaiarem a sua dança lúgubre.
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Reedição
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sábado, 10 de maio de 2014

FRAGRÂNCIAS DE MAIO

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Fotografia de AC, Gardunha
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Descia a rua, enlevado, refém da fragrância das flores de Maio.
Quando passava à tua porta, epicentro do mundo, a varanda era o local dos milagres por acontecer. Sentia-te por perto, sabedora dos meus passos, o viço dos manjericos era o sorriso que perpetuava o perfume dos sentidos.
O coração, rendido, teimava em ficar, mas continuava a descer a rua trauteando ária interior. As papoilas já se insinuavam na seara, em breve chegaria a época do trigo maduro.
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sábado, 3 de maio de 2014

UMBIGUICES

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Hélio Cunha, Hiroxima, meu amor
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Socorrias-te dos oráculos, mas eles apenas te segredavam o que querias ouvir.
Improvisavas danças ao luar, tentavas descodificar as nuvens, mas a plateia apenas aplaudia, comedida, até justificar o convite e a ceia.
Lançavas as cartas, tentavas ver para lá do espelho, sobressaltavas-te com o despertar dum gato preto. Querias entender, ter tudo ao alcance da mão. Desesperavas.
Hoje, quando acordaste, quiseste ajustar contas com o mundo. Hoje, como sempre, esqueceste-te de olhar para lá de ti. E, inacreditavelmente, a vida continuava.
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sábado, 26 de abril de 2014

PELE

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Margarida Cepêda, Entrada no Labirinto
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A tua pele é única, segredo alquímico forjado na tentativa de compreensão dos segredos mais simples e profundos.
Sabe das virtudes do ninho, mas respira ao ritmo dos voos em liberdade, em que a linha do horizonte é reformulação permanente.
Sente o apelo do longe, mas o amor que destila carece de se envolver no percurso, de sentir a saliva que hidrata as sensações.
Afasta o ruído das palmas fáceis, pois sabe que a recompensa é matéria delicada.
E as flores vão despertando...
A tua pele não é de ninguém, a tua pele é do mundo.
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Fevereiro de 2011
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