terça-feira, 18 de outubro de 2016

ESBOÇO, MAL AMANHADO, DA CANÇÃO DA PERSISTÊNCIA

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Fotografia de AC
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Refulgem os dias de outono, como que dando o melhor de si no anúncio da demanda perdida, mas tu persistes. Alcançaste, com o teu esforço, o patamar dos que querem perdurar, mas, chegado aqui, continuas a ter dúvidas, não sabes bem o que fazer. Ouves, no soprar dos ventos ressequidos, que as memórias se perpetuam na dimensão do percurso feito, nos gestos que motivam outras visões, outras atitudes, mas o teu instinto não adere, queres ir mais para lá do fado das ideias feitas. Continuas insatisfeito, o que conseguiste sabe-te a pouco. Continua, num olhar cada vez mais selectivo, a seduzir-te a ideia de chegar além, de desmitificar o que está ali, de abençoar o que está aqui.
Estás em contra-mão, sabe-lo bem, mas há muito que, para ti, isso deixou de ser problema. Continuas a querer perceber, antes de mais, continuas a querer ser, antes de tudo. Contigo, quando voares, não haverá fanfarras, contigo apenas se sentirão, ao de leve, os acordes da canção da vida.
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sábado, 15 de outubro de 2016

A VERDADEIRA HISTÓRIA DA BELA ADORMECIDA

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AC, Mulher adormecida
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Tinha adormecido, resignada, nos primórdios, não sabia bem em prol de quê. Lembrava-se, isso sim, do rumor do tempo que, apesar de cadenciado, se comprazia a confundir os outros, deixando, ao de leve, aqui e ali, pequenos sinais, quantas vezes maquilhados de travessuras, accionando a tecla da importância de cada um. E eles, ufanos pela escolha, apressavam-se a elaborar tratados, cultos, de cariz determinante, como se fossem os eleitos para a preservação das coordenadas do verdadeiro cenário.
Aprendera, com o tempo, que tudo se conjuga no infinito, a pressa apenas fazia sentido como antónimo da vida. Por vezes sentia-se tentada, é verdade, em deixar uma dica aqui, outra ali, mas até isso aprendera a controlar. Facilitar, assim lhe segredava o tempo, nada augurava de bom.
Continuava a dormir, mas de forma cada vez mais solta, mais apaziguada. Sabia, como que tatuagem em sentido crescente, cada vez mais entranhada na pele, que há rumos que não dependem só de nós. Cabe aos outros, enfrentando os medos, tecer a melhor forma de os pintar, de os esculpir, de os movimentar.
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terça-feira, 11 de outubro de 2016

FIGOS

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Fotografia de AC
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O sol já se inclinava quando, de cesta na mão, te abeiravas da figueira. Os pássaros, de papo cheio, já não cirandavam por ali. Debitavam poemas, por perto, à beira do ninho, e as suas estrofes, repetidas no dia a dia, como se tivessem atingido, há muito, o zénite da existência, tinham o condão de te apaziguar, de te embalar.
Olhavas, medias, colhias os figos mais maduros. Depois, com a cesta plena de ternos poemas, regressavas a casa, inundando-a com o sorriso das pequenas coisas. 
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sábado, 8 de outubro de 2016

O RUIR DO CESTO DA GÁVEA

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Sergei Aparin, Arm-char for the poet
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No início havia um poço. Fundo, muito fundo, por onde começaram a despontar, por acção da luz, muitos embriões duma coisa nova. Eram energia em estado bruto, eram matéria por eclodir. Debatiam-se por espaço, no instinto da sobrevivência, em constante embate, sem toque a rebate, e só os mais fortes chegavam ao cimo, supremo apelo, sem contraditório, de algo por descobrir. 
Os que chegaram, e apesar do espaço abundante, continuaram a batalhar. Acordar, no dia seguinte, implicava sempre tolher os passos a alguém.
As células continuaram a multiplicar-se. E, no esplendor da luz, alguns aprenderam a partilhar. Perceberam que, dessa forma, teriam mais a ganhar. Mas havia sempre um, mais célere, que teimava em se evidenciar. Estava-lhes no sangue. 
Na forma, com o passar dos tempos, tudo se pareceu aperfeiçoar, mas no conteúdo, ah, no conteúdo, o embrião teimava em não se metamorfosear. Para um qualquer visitante, a vida, neste mundo, era uma entidade insinuante, plena de cores e mistérios. Em breve, previam eles, seria igualdade de enaltecer, nada a poderia deter. Assim o transpareciam as luzes, cada vez mais intensas, assim o asseguravam as mensagens, cada vez mais sofisticadas. E comungadas.
O passar dos anos, contudo, trouxe novos esboços. Por entre o toque do despertar, cada vez mais cedo, e o regresso para o descanso, cada vez mais tarde, começaram a acontecer, por mais discretas, algumas falhas de luz. O sistema, ainda que atento, não impedia que, aqui e ali, surgissem perguntas, pequenas contestações, que com o tempo ganharam consistência. Eram uma minoria, lá isso eram, mas nunca se sabe o efeito dum possível contágio. E as medidas, em prol da segurança, não tardaram.
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Os aviões sobrevoam os ares, vemos passar as estrelas cadentes, o nosso quintal continua repleto de pequenas comodidades. Contudo, mesmo ao nosso lado, prestes a substituir a realidade virtual, o exército de deserdados, em sentido crescente, é cada vez mais real.
Pensamos que sabemos mais, mas estamos cada vez mais sós. Inquietante é a sensação de que, para lá da névoa, seres sem rosto riem, hienideamente, de nós.
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domingo, 2 de outubro de 2016

O FESTIVAL

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Fotografia de AC
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Na zona havia várias figuras diferentes, características, daquelas que são postal de qualquer lugar, sujeitas ao humor dos demais. Mas o Severino era caso único.
Antigo estudante em Coimbra, por onde deambulara vários anos, acabou por regressar à terra sem curso. Diziam uns, em voz baixa, que foram amores mal correspondidos. Outros, os mais antigos, rematavam a questão com deram-lhe por lá alguma coisa a beber, enquanto encolhiam os ombros em sinal de resignação. Fosse como fosse, a família colocara uma pedra sobre o assunto. E o drama do Severino, falado apenas à socapa, acabara por se desvanecer.
Os anos passaram. O Severino, herdeiro de terras e gados, foi gerindo as coisas ao seu ritmo. Falava com todos, sorria mesmo, mas apenas o indispensável. Não era bicho do mato, mas cultivava uma prudente distância, como que dizendo aos outros que cada um sabia da sua vida.
O Severino, sabedor privilegiado, através de antigos colegas, dos humores da política de subsídios dos burocratas europeus, tudo aproveitou, fosse abate ou implemento da vinha, do olival ou do que quer que fosse.
A vida não lhe corria mal. O dinheiro, embora pouco abundante, não faltava, dava emprego sazonal, percorria os campos como quem respirava. Mas sempre no mesmo registo: falava o indispensável, sem nunca se privar de sorrir.
As pessoas, a pouco e pouco, foram-se habituando àquela forma de estar. Continuavam a murmurar, estava-lhes no sangue, mas o tom era diferente.  A desconfiança, perante quem se detinha mais com as plantas do que com os homens, tornou-se respeito, do despeito adveio admiração. O Severino, contudo, pouco ou nada ligava.
Um dia a aldeia olhou-se, interrogada, para as máquinas que passavam em direcção a um dos campos do Severino. Da boca dele, nada. As opiniões dividiram-se, com algum calor à mistura, e mais se acentuaram quando, passado algum tempo, viram que, da paisagem dum velho olival, de troncos já bastante carcomidos, se vislumbrava agora um terreno liso, com três pequenos edifícios estrategicamente construídos, ladeados com uma ou outra árvore, de maior porte, poupadas, possivelmente, para sombra.
O falatório aumentou, os rumores eram mais que muitos, mas do Severino não se ouvia nada. Alguns, com maior proximidade, ainda ousaram perguntar-lhe o que era aquilo, mas ele apenas sorria. E só quando, uns meses depois, foram convocados para uma reunião no salão da Junta de Freguesia, é que ficaram a saber o que o Severino andara a tecer aquele tempo todo: a realização de um festival de música rock, com carácter anual, que traria à terra milhares de visitantes. 
Ainda mal a missa começara e já as bocas se abriam de espanto. O Severino, tal como os desconhecidos que o rodeavam na mesa, se queriam levar a deles avante, tinham muito que explicar. Mas ele, fiel ao seu registo, continuava a sorrir.
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terça-feira, 27 de setembro de 2016

ACERCA DA IMPRESCINDÍVEL ENERGIA DOS AMIGOS

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Da vida sei o que sei. 
E quanto mais sei, 
mais convencido fico 
que pouco, ou nada, sei.
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Os títulos e as honras 
há muito ficaram para trás.
Ter isto ou aqueloutro, 
maior ou menor que o outro,
é coisa que não satisfaz. 
Que procuro, então? 
Que águas fomentam o meu tesão?
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Numa qualquer encruzilhada,
alguém quer desistir.
Dou-lhe a mão, dá-me a dela,
abre-se uma nova janela,
há vontade de prosseguir.
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Da vida sabemos o que sabemos. 
E quanto mais sabemos, 
mais convencidos ficamos 
que pouco, ou nada, sabemos.
Mas, mão na mão, continuamos.
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sábado, 17 de setembro de 2016

A BIBLIOTECA QUE (AINDA) SORRI

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AC, Chuva em modo protegido
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Já chegou aos 90, mas a Ti Laurinda continua a gostar de gente, de corações a palpitar, de pessoas que gostam de ousar, de pousar, de (re)fazer, de rir. 
Os tempos mudaram muito, tanto que até parece outro mundo, mas ela não deixa que as suas memórias se apaguem. E, para os interessados, está sempre pronta para ensinar os rituais da confecção do pão e dos enchidos, como se secavam figos, como se cantava e dançava no seu tempo. Não lhe faltam histórias do outro mundo, temperadas de crenças, e até a receita de algumas mezinhas lhe continua a sair em voz pausada, mas sem hesitações. Quando o interlocutor vem com tempo gosta de falar da sua mocidade, das cantigas nos campos - às vezes, sabe, para enganar a fome - das desfolhadas, da apanha da azeitona, da boa vizinhança. 
- Veja lá que até dormíamos com a chave do lado de fora da porta!
Continua a gostar de viver, nota-se. Mas há algo que, de vez em quando, lhe turva o olhar. 
- Sabe, agora há estradas por todo o lado, boas casas, muita fartura de tudo. Nisso o mundo está muito melhor. Mas as pessoas estão diferentes, andam sempre a correr de um lado para o outro, já não dão importância à palavra dada. Têm muito, e ainda bem, que no meu tempo era uma desgraça pegada, mas nós éramos mais unidos, ajudavamo-nos uns aos outros. Agora cada um puxa para seu lado, olham de lado uns para os outros, desconfiado, queixam-se por tudo e por nada, qualquer coisinha as contraria. Porque será, mê senhor?
A chuva estival, ali mesmo à mão, serve-lhe de exemplo.
- Olhe, está a chover e toda a gente se queixa, por isto ou por aquilo. Mas as pessoas estão muito enganadas, já se esqueceram que quando chove, não chove.  É a vida a ser boa p´rá gente.
E a Ti Laurinda, matreira, sorri como quem pisca o olho...
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sábado, 10 de setembro de 2016

ESTRELINHA VAI, ESTRELINHA VEM...

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Ilustração de Luiza Maciel Nogueira
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Meio da tarde. Pelo terreno, espaço de amplas liberdades, cirandava um melro que, qual boneco articulado, ensaiava, com o bico, graciosos movimentos ritmados, de vai e vem, na captura de sementes ou de alguma lagarta distraída. 
Um dos pequenotes, movido pelo deslumbramento, tentou apanhar o pássaro, irrompendo de braços abertos. Sentiu o duro do chão, preço normal de qualquer lição. Os outros, rindo, afastaram o espectro do choro. 
Um dó li tá, 
Quem está livre
Livre está!
O melro, a distância segura, prosseguia no seu debicar. As crianças, num mundo só delas, continuavam a povoar a tarde de estrelas.
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sábado, 3 de setembro de 2016

PORTO DE ABRIGO

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Barbara Issa Vagnerovà, Pesquisas Fúteis
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Sempre foste assim. Queres saber, entender, fazer, numa vontade sem pausas, sem limites, sem fronteiras, como se tudo dependesse de ti, como se a química da vida, por mais delicada, estivesse ao teu alcance.
Admiro, à distância, a tua perseverança, essa crença extraordinária, por mais que caias, esse dom, capaz de dobrar qualquer cabo, de nos fazer acreditar na existência de milagres. Sabes, uma parte de mim continua sensível ao desejo de embarcar, mas a outra, filtrada em mil andanças, há muito descobriu o prazer do silêncio bordado no canto das aves. 
Continuo a observar-te, pelo canto do olho, enquanto trato das minhas plantas. Um dia destes, estou certo, irás atracar na minha horta, porto de abrigo onde as ondas, delicadas como os pássaros, vêm debicar na palma da nossa mão.
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sábado, 20 de agosto de 2016

CRÓNICA ESTIVAL - O TONINHO

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Todos os anos, pelo estio, o pequeno burgo é tomado de assalto. Centenas de pessoas, aproveitando a pausa do chicote, apontam a bússola naquela direcção, em busca de algo que as renove, que as faça sentir que a vida não é mera ilusão, que vale mesmo a pena. Os residentes, resignados à invasão, acabam por tentar tirar partido do fenómeno: uns alugam casas; os poucos pescadores, amarrados a uma prática ancestral, vendem peixe na praia; outros povoam as artérias para aliciar os veraneantes a comprar conquilha, acabadinha de apanhar; da serra algarvia, a dois passos, chegam vendedores de figos, de tomates, de melão e de outras novidades do campo...
O Toninho, já entradote na idade, também gosta de povoar as ruas com a sua "loja". Vendedor de circunstância, o que o move não é o lucro. Gosta de conviver, de olhar para as pessoas, de sentir o calor humano. Baixo, magro, de boné na cabeça, ostenta um bigode farfalhudo que parece complemento do enorme nariz, que se esbate perante o calor humano que emana dos olhos. Não, o Toninho não está ali unicamente na mira de mais uns euritos para beber um copo, até porque aquilo que tenta vender pouco apela a quem passa, ele quer, essencialmente, que reparem nele, que lhe acenem, que lhe falem.
O Toninho tem uma bicicleta, com que se desloca, regularmente, para umas surtidas ao campo, o seu mercado abastecedor. Umas vezes, se tiver sorte e o dono das figueiras não rondar por ali, consegue uns figos, que depois ostenta numa cesta de verga, com dois passarinhos de plástico pendurados no cimo, virados em sentido oposto. 
- Esses passarinhos cantam bem, Toninho!
- É verdade, e cada um canta para seu lado!
E o Toninho, satisfeito, solta uma gargalhada. A "loja" é o seu passaporte para entrar no mundo das pessoas, carta de alforria das limitações que o amordaçam no resto do ano. 
Quando o dono da loja não consegue figos da figueira, vira-se para as alfarrobeiras ou para os cactos. E, na sua montra, apregoa, com voz forte e colocada, os figos-da-índia: 
- Olha a loja do Toninho, pode provar que não paga nada!
Quando os frutos são total impossibilidade, o nosso vendedor não desanima. Pega num monte de conchas, de diversos tamanhos, e coloca-as por cima de uma caixa de fruta virada ao contrário. No meio, para harmonizar a banca, uma pequena jarra com duas flores de plástico. É quanto lhe basta para atrair a atenção das crianças, maravilhadas, que trazem sempre os adultos pela mão.
O Toninho, enfeitado, eternamente, num genuíno sorriso, apenas quer que reparem nele, que lhe retribuam o gesto. É quanto lhe basta.
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