sábado, 30 de janeiro de 2010

SÁBADO

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Depois de ter a cova pronta, pegou num pouco de adubo e colocou-o no fundo. Pôs-lhe uma camada de terra por cima, para não queimar as raízes da jovem árvore, outra camada de folhas secas, e só então, com todo o cuidado, colocou a pequena cerejeira na cova. Envolveu, com terra fresca, toda a zona da raiz e, de seguida, deitou um pouco de água.
Quando acabou de encher a cova com a restante terra, apoiou-se no cabo da enxada e olhou, satisfeito, para o resultado do seu trabalho. O contacto com a terra fazia-lhe bem, limpando-lhe a cabeça das preocupações dum quotidiano intenso em que, apesar de adorar o seu trabalho, a pressão imposta pelas novas filosofias económicas o privava de qualquer resquício de tempo ou disposição para se dedicar a outras coisas da sua afeição. Mas quando chegava o sábado, era sagrado. Pegava numa tesoura de podar ou numa enxada e embrenhava-se nas lidas da terra, como se andasse em demanda da cumplicidade ancestral gravada no lugar mais profundo do ADN de qualquer ser humano.
Aprendeu a interpretar os sinais das plantas, as suas transformações, começou a olhar para as aves com outros olhos, mas sobretudo com tempo. Quando a enxada mergulhava na terra, fazia-o como se de um ritual sagrado se tratasse. Sentia o golpe em toda a sua extensão e, quando rasgava as suas entranhas, absorvia os aromas como se lhe contassem os segredos mais elementares do universo. Tudo ficava para trás perante a simplicidade do óbvio, o sentir de cada coisa no lugar certo.
Ao almoço, com a família reunida, os benefícios dum tempo limpo faziam-se sentir, em todo o seu esplendor, num convívio aconchegante. Os rapazes discorriam, descontraidamente, sobre as peripécias da vida universitária, com um à vontade só possível num cenário em que o tempo está escalonado na sua verdadeira dimensão. Lá fora, embaladas no cantar da passarada, as plantas, alheias à pressa inventada pelos humanos, iam cumprindo, tranquilamente, o seu ciclo de crescimento...
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domingo, 24 de janeiro de 2010

VIOLETAS

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Já era tarde, mãe
E a translação
Em relógio solar
Deixava sulcos
Calados e profundos
Na vontade
Do teu respirar.
Ainda falavas
Com entusiasmo
Da Maria menina e moça
Quando à tardinha
No fontanário
Em apelo de mulher
Trocava olhares
Dissimulados
Com o príncipe aldeão
E as violetas
Deslumbradas
Davam as mãos
Na elaboração do cenário
Que formalizava
As razões do coração.
O sol já se despedia
Para lá do monte
Mas ainda sentia
No teu olhar
O aroma das violetas
Que engalanou
Naquele fim de tarde
Com emoção e sem tino
O oráculo que descrevia
Num voar de cotovia
A luz do teu destino.
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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

AURA

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Pintava a tela
Em suave colorido
Delicada clave
Da ária interior
Reveladora
Dum tempo maior
Que transportava
Em sorriso sereno
Etéreo violeta
Alma de poeta
Em jardim ameno.
O mundo espalhava
Em voz informal
A doce alternativa
E alimentava a corrente
Necessária e urgente
De insuflar na vida
A ideia positiva.
Descia a rua
Em delicada postura
Com música de fundo
E a brisa suave
Era cúmplice da ave
Na vontade madura
De abraçar o mundo.
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terça-feira, 19 de janeiro de 2010

RESISTÊNCIAS

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Os campos envolventes já não são o que eram na sua mocidade. Nessa altura, contam eles, era um regalo olhar para os terrenos cultivados, cheios de vida e de cor, com ranchos de pessoas a cantarolar enquanto desenterravam o sustento das entranhas da terra bem amanhada.
Rivalizavam na proficuidade das hortas, espelho da sua vaidade, e empenhavam-se na palavra dada, ou não fosse a honra um valor a defender.
Mas os ventos da História mudaram. Os longos braços da globalização também chegaram até aqui, e o desenvolvimento da tecnologia e a liberalização do mercado vieram alterar, significativamente, hábitos e costumes que pareciam imutáveis.
Até há pouco tempo, uma seara era sinal de pão na mesa, de sobrevivência garantida, e contemplá-la fazia bem aos olhos e à alma. Hoje, porém, fica mais barato comprar a farinha, chegada a preços convidativos de um grande país produtor. Para lamento dos poetas, o sugestivo e inspirador ondular das espigas de trigo começou a desaparecer, lentamente, da paisagem. Um terreno por cultivar, infelizmente, há muito que não espanta ninguém. Vão restando as hortas, territórios privados onde cada um vai expurgando os males do mundo.
Mas recusam-se a morrer. Alguns deles criaram, há cerca de dez anos, o Grupo de Cantares de Aldeia de Joanes, onde partilham o gosto pelas tradições da terra, desde os cantares até aos modos de viver cujas origens se perdem nas brumas do tempo. Numa altura em que as novas construções e loteamentos põem em perigo as referências culturais da aldeia, os elementos do grupo teimam em preservá-las e, sempre que se propicia, fazem ouvir as suas vozes na interpretação da Ceifa, da Sacha do Milho ou do S. João... Entretanto, para que a memória não se perca, gravaram um CD com várias canções, todas do tempo da sua meninice.
Colaboram com a escola sempre que são solicitados. Há ano e meio, na Festa do Ciclo do Pão, foram eles os grandes protagonistas. Ceifaram, malharam e cantaram, felizes por poderem passar os seus valores às novas gerações. Vestidos à época, bem apetrechados de foices, manguais e outros artefactos, passaram o tempo a sorrir, apesar do calor sufocante. Reviveram tempos passados, contaram muitas histórias e fizeram soltar umas boas gargalhadas. Gente de boa cepa, é o que é!
Se passar pelos campos de Aldeia de Joanes e tiver tempo para uma pequena pausa, apure bem o ouvido. Nunca se sabe se, por artes da imaginação ou pelo lamento saudoso da terra por arar, ouve o sussurro de uma voz, entoando:
..........Ai se fores ceifar ao campo
..........Ai levai a vossa samarra
..........Ai ceifai muito, ceifai pouco
..........Ai se caio não ceifo nada...

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domingo, 17 de janeiro de 2010

OPINION MAKER

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Era um jovem promissor. Com talento natural e uma ambição desmedida, atirou-se ao mundo cheio de entusiasmo.
Depressa percebeu que o que Deus lhe dera, os homens não reconheciam: a César o que é de César, a Deus o que é de Deus. E, bem recomendado, foi ter com César.
Conheceu as pessoas certas, convenceu-as do seu talento, e em breve foi testado num dos múltiplos cargos controlados pelas teias do poder. Mostrou serviço e conquistou a confiança de César.
Tempos depois um jornal convidou-o para colunista, e César telefonou a felicitá-lo. Agradeceu. Começava a ter nome na praça e sabia quem lhe tinha aberto a porta.
Com inegável talento depressa conquistou os leitores. A sua opinião era considerada e fazia-se pagar bem por isso.
Um dia, quando a opinião pública andava agitada com uma determinada medida de César, recebeu um telefonema de preocupação. Percebeu, então, que tinha chegado a hora de começar a pagar a factura.
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terça-feira, 12 de janeiro de 2010

ARGUMENTO PARA UM INTERVALO DIFERENTE

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Último dia de aulas do período. Num cantinho do recinto do recreio, resguardado de outras brincadeiras, o Pedro escava na terra. De repente, após um gesto mais convicto, do buraco sai um pequeno raio de luz. Curioso, o Pedro escava com mais força. Mais um, dois, três golpes, e o brilho alastra a todo o recinto.
As brincadeiras param. Lentamente, num misto de curiosidade e desconfiança, os pequenos figurantes dirigem-se para o local da fonte luminosa. Então, qual filme animado, sete sorridentes formigas saltam do buraco e, a um sinal da líder, a do meio, iniciam uma coreografia hilliwoodesca, entoando em simultâneo:
..........É tempo de parar!
..........É tempo de folgar!
..........Vamos lá meninos
..........Não parem de saltar!
Depois, após um solo de sapateado da chefe, entoam em uníssono, de antenas em riste:
..........E quem não salta, não é da malta!
..........E quem não salta, não é da malta!
E toda a gente saltou, transformando o recreio numa festa ainda maior que o habitual.
A Teresa, a auxiliar, esfrega os olhos para acreditar no que está a ver. Estaria a sonhar?
Quando volta a olhar, os pequenos continuam a brincar como sempre fizeram: uns saltam à corda, outros jogam às apanhadas, outros à bola... Só o Pedro, no seu cantinho, continua a escavar o buraco, à procura não se sabe bem do quê.
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sábado, 9 de janeiro de 2010

FORMATAÇÃO

.Spencer Tunick, Rebanho
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O alvor era plúmbeo
E a multidão
Em reserva vigiada
Iniciava a jornada
Alimentada
Em doce medicação
Definida
Por criteriosa programação
Que tolhia o temor
Reforçava o vigor
E anulava a emoção.
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Evitava a receita
E vagueava
Por entre a carneirada
Negando o cenário medonho
E enfrentava a dor
Ansiando esboço de cor
Alimento do seu sonho.
Procurava a claridade
Que promovia o abraço
E encarnava a cotovia
Na inglória melodia
De alcançar o último raio
Olvidando o cansaço.
Depois de detectada
A ovelha tresmalhada
Foi-lhe diagnosticada
Reacção química desajustada
E o laboratório
Em receita eficaz
Apagou a ideia
Do perigoso purgatório
E a alma penada
Foi programada
Com código testado
No sorridente bem-estar
Do mundo formatado.
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terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O BUROCRATA

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Olha para o mundo
Em filtro de números
Mapas
Grelhas
Planos
Instrumentos infalíveis
Na projecção de resultados
Fabricados
Em função dos objectivos
Delineados
Em gabinetes inspirados.
Não gosta da cor
Mas é sonhador
E no seu interior
Imagina o mundo
Em plano de fundo:
Uma enorme aldeia
Espécie de colmeia
De abelha operária
Sem qualquer paragem
Na cadeia de montagem.
Se saísse à rua
Em pleno dia
Talvez a verdade
Nua e crua
Tomasse de assalto
O que restasse
Do seu coração
E fizesse tremer
(Ainda que de leve)
O alicerce
Da sua convicção.
Mas está protegido
Na torre envidraçada
Dissimulada
Em cortina fumada
E a sua alma
Há muito sem perdão
Ficou abandonada
Perdida e rejeitada
No cesto de papéis
Dum qualquer saguão.
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sábado, 2 de janeiro de 2010

VIAGEM

.Gustavo Fernandes, Raiz Encaixada
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Olhava em volta e não se identificava com o que via. Os outros olhavam-no de lado, como se dali nada pudesse vir de bom.
Um dia descobriu um livro de receitas e leu-o com avidez. A partir daí começou a olhar para o mundo com outros olhos, e resolveu partir em demanda. Mas estava tão imbuído dum determinado formato que calcorreava os caminhos com uma leveza estonteante, fotografando-os de forma leve e apressada. O destino, acreditava, jogava por si, e mais tarde ou mais cedo chegaria à descoberta do graal almejado. E prosseguiu o seu caminho.
Entre tempestades e bonanças, fugas e abandonos, quedas e sobressaltos, o bom porto nunca chegava. E desesperava.
Quando o naufrágio se adivinhava, regressou às origens e ancorou em local de abrigo. Lambeu as feridas, aquietou-se, olhou em volta. E finalmente descobriu, dentro de si, a razão de ser da raiz.
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quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O CEMITÉRIO DE ELEFANTES

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A Cova da Beira, fértil vale entre a Gardunha e a Estrela, é um dos sítios de Portugal mais aprazíveis para se viver. Tem água em abundância, terrenos férteis, paisagens de comover poetas, bons ares, referências históricas, gente de boa índole... A Espanha está mesmo aqui ao lado e o acesso a Lisboa, todo em auto-estrada, faz-se num ápice.
À partida deveria ser uma zona apetecível para um poder político que se preocupasse com a qualidade de vida das populações. Mas não é. Infelizmente. Num ritmo assustador, a Beira tem assistido à partida, ano após ano, de gerações inteiras dos seus melhores filhos em busca de oportunidades, no litoral ou no estrangeiro, que dêem resposta aos anseios profissionais que a região de origem, desgraçadamente, não lhes pode oferecer. Não havendo vontade política nem investimento, não há empregos. E a esta lógica ninguém consegue fugir, transformando a região, aos poucos, numa zona de gente envelhecida. A Universidade da Beira Interior, com alguma pujança, e os Politécnicos de Castelo Branco e da Guarda, têm atenuado um pouco este cenário, mas os seus efeitos não são suficientes para cimentar uma lógica de desenvolvimento equilibrado. Formam pessoas que vão trabalhar, na sua maioria, longe daqui.
Curiosamente, ou talvez não, nos últimos tempos ouve-se falar em diversos projectos para a construção, na região, de bem apetrechadas unidades com vocação para acolher idosos endinheirados. E assim, fazendo um simples exercício de projecção no futuro, não é difícil imaginar, daqui a alguns - não muitos - anos, a Cova da Beira: um enorme cemitério de elefantes, dividido em escalões sociais. A par de uma população activa com tendência para o envelhecimento, vão proliferar, por um lado, os apertados e apinhados lares das instituições de solidariedade social, reservados aos mais desfavorecidos e remediados; por outro, os empreendimentos luxuosos para quem tem a carteira bem recheada, com acesso a todo o tipo de cuidados. Até no fim a dignidade tem um preço.
Que os políticos e os diversos agentes locais - e há por aí gente muito capaz - lobriguem a inspiração necessária para contrariar a tendência, devolvendo a esta terra a esperança no futuro, são os meus votos.
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