sábado, 24 de fevereiro de 2018

ESPELHOS

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AC, Nevoeiro na Gardunha
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Naquela manhã, qual desafio dos deuses, a luz mostrava-se arredia. Talvez, em eterna dúvida, eles quisessem testar, pela milionésima vez, o material de que é feito um simples mortal, talvez quisessem aferir a convicção com que se enfrentam os desafios da vida.
Por entre a bruma tudo se configura, tudo é possível de desenhar. Não, não eram feras ou monstros que eu descortinava, dando vazão a ancestrais medos, como se a vida se jogasse na defensiva. A princípio, confesso, os passos eram hesitantes, qual cuidado a ter em visão limitada, mas depressa o pensamento se soltou. E, às tantas, liberto de fantasmas catalogados de ultrapassados, mas de que não se sabe a profundidade da raiz, comecei a desenhar-te na forma das copas, nos ramos que se soltavam, na etérea bruma que teimava em insinuar-se, vendo cor onde, aparentemente, pouca cor havia. Não, eu estava ali de corpo inteiro.
Sabes, naquela manhã dei comigo a ler-me, qual espelho multifacetado, em que todos os rostos vêm à tona. Gostei de me ver, gostei de te ver.
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sábado, 17 de fevereiro de 2018

A TOMADA DO CARVALHAL

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A memória remonta a 1890, passada de geração em geração nas gentes do Souto da Casa. Dizem as pessoas que, nessa época, de parcas posses, o sítio do Carvalhal, situado numa elevada quota da Gardunha, era repartido por três interesses: a família Garrett, uma das mais poderosas do distrito, explorava as pastagens; à Irmandade do Santíssimo cabiam as castanhas; ao povo do Souto da Casa, por sua vez, cabia o amanho da terra, que não ia além do cultivo do centeio, pois a altitude e a qualidade dos terrenos para mais não davam. Mitigavam a fome, mas pouco.
Diz o ditado que quem mais tem, mais quer. E a toda poderosa família Garrett, fermentando esta evidência, deu ordens ao seu feitor para que ocupasse todos os terrenos do Carvalhal, deixando de fora todo um povo que, na míngua, mendigava um naco de pão em zonas altas da serra, só acessíveis a muito caminhar.
O povo não se conteve. Os sinos tocaram a rebate e, após breve concílio, toda a gente se dirigiu para o Carvalhal. António Aquém, feitor dos Garrett, foi apanhado na intempérie e, como represália, foi obrigado  a transportar às costas, até à povoação, um pesado e grosso tronco de castanheiro.
Com maior ou menor pormenor - quem conta um conto acrescenta-lhe um conto - o episódio é mesmo real. E desde essa data, há 128 anos, o povo do Souto da Casa, para festejar o acontecimento, todos os anos se mobiliza para o sítio do Carvalhal, no primeiro dia a seguir ao Carnaval, com recheada merenda a tiracolo.
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Nos últimos anos, qual irmandade em constante renovação, muitas são as pessoas exteriores à terra que se associam aos festejos, identificando-se com o sentir daquele povo, que se auto-designa da "rama do castanheiro", ou seja,  de antes quebrar que torcer. 
Este ano, um grupo de pessoas de valores sólidos, que gosta de conviver e de partilhar, achou por bem convidar-me. E eu, eterno defensor da união das ilhas que tendem a habitar em nós, não podia dizer que não. O tempo estava pouco convidativo, muito encoberto - lá em cima o nevoeiro foi verdadeiro anfitrião, qual D. Sebastião a testar a crença das pessoas - mas lá fui eu, muito bem acompanhado, para me unir a festejos que, na sua essência, antecedem, em muito, o 25 de Abril.
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O espírito, lá em cima, é partilhar com quem apareça. No bornal, devidamente apetrechados, os meus anfitriões levavam ementa de estalo para dar vida na brasa, com a ajuda duma simples pitada de sal:  pedacinhos dum borrego escolhido criteriosamente e... tordos, apetitosos e deliciosos tordos. Mas havia mais: chouriças de várias proveniências, com incidência na zona raiana, um coelho de estalo, com um molho, preparado na hora, a condizer, e um feijão previamente cozido num forno a lenha. Para acompanhar, pouco de modesto: três tipos de vinho de diferentes proveniências. 
Ainda havia o arroz doce, o café de brasa - coloca-se uma brasa dentro do café, nem sabem o bom que fica! - um digestivo. E as pessoas a passar, a comunicar, a provar enquanto reforçavam os laços...
A seguir foi o meu grupo que cirandou pelas mesas adjacentes. E, por entre uma graçola e um sorriso, quase sempre de copo na mão, a tradição da Tomada do Carvalhal lá se ia cimentando, com os mais novos a fazer a sua própria festa.
De permeio, por entre o toque dos bombos, a pergunta/celebração:
- De quem é o Carvalhal?
A resposta, em uníssono, é sempre a mesma:
- É nosso!!!
No próximo ano, faça sol ou caia chuva, lá estarei para renovar os laços.
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sábado, 10 de fevereiro de 2018

OUSAR RECUSAR, OUSAR APRENDER A VOAR

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AC, Gardunha
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Olhei em volta. Havia uma constante resignação, que não dava, mas queria, que não sonhava, mas tolhia. 
Havia um constante matraquear, que não se ouvia, mas sentia. 
Que fazer?
Rompi para lá da névoa, descobri um poiso de aves e instalei-me nas proximidades. A pouco e pouco, sem ruído, comecei a aprender a voar.
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sábado, 3 de fevereiro de 2018

CONCÍLIO EM FINAL DE DIA

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AC, Concílio em final de dia
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Já se despede o Sol, num ligeiro aceno, tingindo o vale, sorridente, em depurada luz apelando ao etéreo.
O salgueiro, a poente, começa a albergar os arautos do final do dia, num breve concílio sobre a azáfama diária. Manifestam-se os pardais, num chiar constante, mas breve. Tal como chegam, assim partem, num apurado sentido prático. As cotovias, assumindo o papel de poéticas musas, elevam-se no ar, perseguindo os últimos raios de sol, como que não aceitando a partida da luz. E agitam as asas, freneticamente,  procurando chegar mais alto, tentando evitar o inevitável. Indiferente a toda esta agitação, o céu continua a ser sulcado, de forma persistente, pelo arar dos aviões, quase coabitando com as estrelas que se começam a insinuar, de forma ténue, enquanto a Lua, timidamente, marca o ponto.
Continuo a olhar, maravilhado, até sentir a tua mão no meu ombro. Está frio, eu sei, mas ambos sabemos que há um calor que emana, constantemente, do milagre da vida. É por isso que, apesar das intempéries, teimamos em continuar a sorrir.
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sábado, 27 de janeiro de 2018

A POUPA

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AC, Poupa: focada no alimento, desfocada na imagem
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É laboriosa, quase pontual, isto na perspectiva de quem observa. Depois de se instalar debica constantemente, em movimentos sincopados, conseguindo encontrar alimento onde mais ninguém o vê. Mas, para lá de tudo o mais, é esquiva, como que sentindo que a proximidade dos humanos não augura nada de bom. 
Resisto à tentação de lhe pôr um nome, isso seria sinónimo de propriedade. Que não é o caso. A poupa que frequenta o território, supostamente meu, não é de ninguém, ela tece o seu próprio destino. Quanto muito partilha o mesmo espaço, supremo privilégio, deixando dádivas que eu agradeço profundamente. É que a partilha tem a duração dum pequeno-almoço, tão só, daí esta refeição ter tendência a ser saboreada sem qualquer pressa, como se de um sagrado ritual se tratasse.
Nada sei da azáfama da poupa enquanto estou ausente, mas às vezes, quando regresso, ela ainda anda por aqui. Com o tempo, após várias tentativas, ela deixa-me aproximar, mas pouco. O voo, para longe, é o resultado mais provável. E então resguardo-me, na esperança de que a poupa regresse, mas não. Só no dia seguinte, bem cedo, ela retoma a sua azáfama de debicar, debicar constantemente, albergando alimento como se tivesse um rancho de filhotes à sua espera.
A poupinha, como aqui é tratada, à distância, tem o condão de dar vida às primeiras cores da manhã. Embora esquiva, como convém, ela já faz parte da saudável rotina familiar.
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domingo, 21 de janeiro de 2018

O LEVE DESPERTAR DO DRAGÃO

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Fotografia de AC
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Há um dragão que desperta, lentamente, tecendo hologramas de labaredas, como se quisesse avivar sinais de transcendência, que povoam, em leve torpor, a caixa negra de cada um. Mas é apenas por um momento, não mais, qual mensagem reservada aos mais atentos.
Ontem, quando passei por ti, caminhavas, convicta, de fato de treino e garrafa de água na mão, com os passos embalados na promessa de eternos dias. Não reparavas, contudo, no despertar do dragão. Estavas demasiado certa dos teus passos, traçados a régua e esquadro. No teu mundo não há lugar para dragões.
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domingo, 14 de janeiro de 2018

MADRUGADA

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Margarida Cepeda, Leves são os pássaros
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Sinto-te à distância, mas perto de mim.
O teu respirar é fonte abundante, ainda desconhecedor do manancial da nascente, mas que, enquanto trauteia, imitando os pássaros, cultiva a secreta ambição do conhecimento dos segredos.
Sinto-te o nascer da inquietação, tecida no mais fundo de ti. E isso perturba-me. Talvez porque deseje descobrir as aflições e as tempestades que se escondem sob o teu manto, ainda sem os suaves contornos do leito.
Mas a água jorra, fecunda. E, por ora, é quanto basta para dar cor ao anseio.
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Outubro de 2010
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sábado, 6 de janeiro de 2018

LEVES ROTINAS, PROFUNDOS SENTIRES

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Luís Portugal, Uma semente
(A gravação não é das melhores, mas o timbre de quem sente o que canta está lá. E é destas coisas que eu gosto, fora dos corredores de quem decide e faz opinião)
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Havia um vislumbre de esperança para cá da encumeada, como se, de repente, fazendo negaças ao nevoeiro, algo permitisse que a terra sorrisse para a semente. Talvez fossem meras tréguas, talvez ilusão, mas era quanto bastava. Ansiava-se, acima de tudo, por um sinal, dum raio que golpeasse o marasmo, dum qualquer movimento que mantivesse a chama viva.
De fora chegavam alertas, como se a angústia tivesse a mesma forma e conteúdo em qualquer lugar. Mas, apesar de agitados, os mensageiros não se mexiam. Lá no fundo aguardavam por algo redentor, como que apeados de qualquer decisão. Entregavam o seu desígnio à mercê do que viam, mas não entendiam.
Continuo, convicto, a acariciar a terra, num ritual que me alheia do passar do tempo. De vez em quando surge a pausa, o olhar em volta. Na zona inculta, mais além, os rosmaninhos, apesar dos resquícios da murcha flor, mantêm-se vivos, embora sem viço, como que ganhando ânimo para o desejado esplendor; a poupa, cliente habitual, sempre sensível ao mínimo movimento, teima em debicar onde parece que nada há; os pardais, sinónimo de omnipresença, parecem alheios a qualquer movimentação, fadados que estão para se sentirem livres em qualquer lugar; lá em cima, em atalaia permanente, uma ou outra ave de rapina, em elegante planar, tenta descortinar algo que valha a pena um mergulho.
Às tantas retiro-me, devagar, como se cada passo transportasse algo de precioso. Decorridos uns metros, poucos, insinua-se o ritual: volto-me, apoio-me na enxada e olho, satisfeito, para a terra remexida. Agradeço, mentalmente, a harmonia concedida e, sempre devagar, dirijo-me para casa. Estava na hora do banho, duma boa refeição, dum bom vinho. Depois, quem sabe, talvez a lareira me seduzisse para folhear um livro, ao som duma música calma.
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terça-feira, 2 de janeiro de 2018

A INQUEBRÁVEL LIGAÇÃO À TERRA

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AC, Carícia
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Sempre assim foi, tudo leva a crer que sempre assim será. Pelo menos até rebentarmos com este maravilhoso planeta, verdadeiro paraíso para quem gosta de sonhar, de se projectar, e que, apesar da incompreensão, continua a resistir ao nosso mau feitio, ou seja, à nossa incompetência. Mas poucos querem saber. Adiante.
Numa suposta douta sabedoria, baseada em egocentrismo,  gostamos de nos prover de confortos vários, renovados a cada passo. E, para garantirmos o estatuto, educamos os nossos filhos para serem empreendedores, inventores, opinadores, gestores, confessores, professores e outras cores, que na maioria das vezes rimam com dores e, uma vez por outra, com amores. Mas, renunciando às memórias, teimamos na mesma receita, sempre a mesma, aceitando de peito feito que o mundo está talhado apenas para os melhores. Predadores, está bom de ver. A outras visões, por inconvenientes, aplica-se o bullying social.
Em pausa lectiva - sou professor, entenda-se - de repente sou confrontado com uma disponibilidade de tempo pouco habitual. Que fazer com tal ventura? Em lista de espera há livros, viagens, reencontros com amigos, burocracias várias. Pouco tempo para uma agenda tão ambiciosa. Por entre  inadiáveis compromissos burocráticos, festejos e encontros familiares, que requerem muito estômago, um ou outro livro lá conseguiu subir à tona, em leitura aconchegada pela lareira, mas algo fazia falta. Lá fora o espaço piscava o olho, requerendo atenção: as sebes, obedecendo a leis naturais, tinham crescido; uma ou outra árvore ainda não tinha sido podada; alguns canteiros estavam a precisar de transplante de rosmaninhos; a terra precisava de ser cavada para a sementeira das ervilhas...
Um novo ano, a ganhar coragem no empolgar do estribilho, a necessidade de sempre de cuidar do que me rodeia. Havia, pois, que pegar nas ferramentas e, com delicadeza, prezar pela harmonia envolvente.
As sebes, apesar de atrevidas, podem esperar, que o cabelo não lhes vai para os olhos, mas a terra, ancestral ligação, requeria urgente atenção. E cavei, alisei, semeei, desencantando sorrisos muito próprios. Ela, a terra, não tem culpa que, em vésperas de regressar à escola, me doa o corpinho todo, pois andar horas e horas a plantar ervilhas de duas qualidades, sem pausas, não abona muito a meu favor. Mas só em princípio, porque a satisfação de andar por ali, em comunhão com a terra, por mais ores que suscitem, ninguém me a pode tirar. E, por mais que protestem as costas, continuo a sorrir.
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sábado, 16 de dezembro de 2017

FELIZ NATAL, GUGA!

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Fotografia de AC (2013)
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Havia um mundo para lá das luzes da avenida, recheado de sombras, onde residiam os vencidos da vida. As estatísticas mostravam-se arredias, pouco ou nada sensíveis com tal gente, que só servia para atrapalhar as contas duma qualquer folha de Excel. Mas, por mais que inventassem novas borrachas, novas formas de subtrair, aquele mundo existia, pleno de grandezas e misérias. Ali, no patamar mais baixo da existência, povoado por um batalhão de desistentes semi-adormecidos, havia corações a palpitar, gente que, nos confins da alma, teimava em sonhar com melhores dias.
Guga tentou manter-se agarrado ao sono, num exercício quotidiano esculpido na prática da sobrevivência. O despertar da grande colmeia, numa correria desenfreada, nada lhe trazia de bom, antes pelo contrário. Àquela hora nunca davam nada e, do seu rasto, ficava apenas o perturbar do parco descanso concedido pela díspar fauna noctívaga. Tentou dormitar, mas não conseguia. Levantou-se, a custo, e esgueirou-se para os lados do Dragão Vermelho, reles bar de engate a preços acessíveis. De vez em quando o pessoal da limpeza, gente do bairro, deixava-o esgueirar-se até aos sanitários, que tresandavam a urina, e por lá saciava as necessidades mais prementes do corpo. Por vezes olhava-se ao espelho, mas era raro, só o fazia quando se sentia capaz de enfrentar os seus fantasmas.
- Despacha-te, Guga, que o patrão pode aparecer por aí!
Por ali ainda tinha nome, ainda que adaptado às circunstâncias, mas só ali. Do outro, associado a outras vivências, de há muito lhe tinha ocultado o rasto, embora, quando o fundo do poço ficava mais à vista, se insinuassem as memórias. Saiu, com um aceno, o pessoal dali nada mais lhe exigia. Sabiam bem que, na vida, há um limiar que a todos pode driblar.
Ao fim da tarde, quando a roda da vida parece endoidecer, Guga começou a estranhar. O movimento era o de sempre, gente apressada por todo o lado, mas naquela tarde havia algo diferente, como se a pressa ganhasse contornos de vida, para lá dos gestos mecânicos. Continuava a haver pressa, mas esta era diferente. Talvez fosse a expressão dos rostos, talvez os gestos mais soltos, como que alheados das grilhetas, talvez fosse tudo isso ou qualquer outra coisa que lhe escapava. O certo é que, apesar de apressadas, as pessoas pareciam transportar algo de precioso dentro de si. Até as moedas, habitualmente escassas, pingavam na sua caixa com outra intensidade.
As ruas foram ficando vazias, mas mesmo os mais retardatários transportavam aquele estranho brilho nos olhos, como se, de repente, descobrissem na sua vida algo que valesse a pena. Guga estranhava, mas não entranhava. E, às tantas, com a rua às moscas, levantou-se do seu poiso diurno, passou pelas traseiras do Clementina, onde uma empregada, de modo furtivo, lhe costumava dar umas bifanas, e dirigiu-se, sem qualquer pressa, para o beco onde, por entre cartões, sacos de plástico e um ou outro cobertor, aconchegava a sua solidão.
Naquele princípio de noite, porém, algo destoava. Encafuada num dos cobertores, lambendo as suas crias, uma mãe gata acabava de dar à luz. Guga parou, meteu a indignação no bolso e, sem se dar conta, deixou-se embalar no quadro, como se, de repente, a vida lhe mostrasse outra face. Ficou por ali, encantado, sem nada dizer, não se atrevendo a dar qualquer passo. Só despertou quando, à entrada do beco, surgiu o Tripeiro, de garrafa na mão, que lhe atirou, com um quase sorriso:
- Feliz Natal, Guga!
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